Entre o céu e a terra. A câmara de filmar desce do alto em direcção a um poço de onde um ancião grisalho tira água: fonte de alívio para o povo da aldeia ucraniana de Skryholivka, terra árida e sem vento. Filmado em plano aproximado, o homem, que despeja a água para um barril, ouve ao longe vozes de crianças. O céu limpo e de um branco ofuscante parece dissolver-se no horizonte como se quisesse por um instante des-vendar as forças ctónicas que se escondem no coração da terra. Imóvel e com o olhar absorto, o ancião deixa-se agora cair no abismo da memória e com ele a câmara de filmar penetra no “fora de tempo da morte” [cf. Dubois, 1983] através de um movimento de câmara descendente, mostrando algumas fotografias. Homens, mulheres, jovens e velhos dirigem o olhar para a câmara, interpelam-nos, advertem-nos acerca da caducidade da vida e das coisas. Olhares imóveis fixados para sempre na imagem fotográfica num fora de tempo eterno e imutável [cf. Dubois, 1983]. O instante deixa espaço à perpetuação, a carne deixa espaço à pedra, e ao reino dos vivos sucede o reino dos mortos [cf. Dubois, 1983]. Mas ainda não chegou a sua hora, se bem que o ancião espere pacientemente a morte. Ele vira as fotografias contra a parede, escondendo-as do seu olhar a fim de que não caia sobre ele o poder mortífero da fotografia-Górgona [cf. Dubois, 1983], aquela que vigia as portas do inferno à entrada do Hades.
Mas, se repararmos melhor, existem outras molduras cujas imagens apresentam uma certa similaridade em relação às fotografias também se, como veremos, conduzem a diversas geografias emocionais. Com efeito, na parede nua da casa, além das imagens dos parentes, há um espelho pendurado entre duas janelas. Eis, então, que encontramos nesta cena inicial a evocação da dupla natureza da imagem foto-cinematográfica: a imagem-espelho, que revela a natureza quiasmática de quem vê e de quem é visto, o encontro do eu com o mundo cuja consubstancialidade se revela na restituição da imagem reflectida [cf. Merleu-Ponty, 1964a; 1964b]; e a imagem-janela de albertiana memória, abertura sobre a realidade fenoménica, retalho e projecção de um pedaço de mundo. Mas o autor, Iurii Illienko, longe de considerar dicotómicas tais imagens, tenta, ao contrário, confundi-las, sobrepô-las, atenuando as fronteiras e as distinções entre elas. O ancião, após ter hesitado por um momento perante o próprio rosto reflectido, vira o espelho contra a parede para depois se sentar e encontrar conforto longe do peso das recordações. Embora esse gesto possa sugerir a vontade do protagonista de impedir o acesso do passado ao presente, a vontade de submergir definitivamente inteiras falhas da memória, na realidade entrevê através da janela de casa o fantasma da mulher defunta, cuja efígie é completamente envolvida e absorvida pelo branco cenário refulgente. A figura humana funde-se assim com a paisagem, a interioridade das recordações com a fisicalidade da realidade exterior num vai-e-vem constante entre subjectivo e objectivo, realismo e ficção, registo e criação, designação e introspecção. E a terra habita-se dos corpos dos seus entes queridos que procedem por detrás do horizonte em direcção ao poço: sombras longínquas de uma ausência imperecível tal como o são as fotografias por trás do velho, novamente sozinho, agora, entre as paredes da casa.
Este entrelaçamento repete-se mediante a alternância entre elementos contingentes, como por exemplo a passagem do avião soviético pelos céus da aldeia, e a recordação da sua mulher jovem entre as árvores em flor enquanto se dirige ao poço ou enquanto, já idosa, caminha de costas, curvada pelo peso dos baldes de água, para um horizonte despido e árido: metáfora da morte, com certeza, mas mais ainda da Ucrânia afligida por anos de guerras e secas. Terra ríspida e inculta, agora regada apenas pelas lágrimas das anciãs que choram, em grande plano e na presença da estátua do soldado soviético, os seus entes queridos mortos na guerra. De resto, também Levko Serdiuk, o ancião protagonista de Krynytsia dlia sprahlykh (A Well for the Thirsty, 1966-1988), de que descrevemos acima as cenas iniciais, pergunta a alguns soldados, que aliviam a sede no poço, se têm visto os seus filhos Andreii, Kyrylo e Vasyl, enquanto num hipotético contra-campo assistimos à marcha de um pelotão do exército filmado de costas: multidão anónima, sem rosto, destinada ao martírio da guerra. Mais uma vez, constatamos a presença simultânea de elementos aparentemente inconciliáveis reconduzíveis ao passado e ao presente, à dimensão onírica e ao real quando, por exemplo, na mesma sequência um homem, presumivelmente um soldado, um dos filhos de Levko, filmado do mesmo modo como foi também enquadrada anteriormente a estátua do militar soviético, é alvejado e o seu rosto ensanguentado se alterna com o rosto sorridente de uma criança, conciliando a vida com a morte, a infância despreocupada com a infeliz idade adulta.
Na verdade, todo o filme se constrói sobre a estratificação e entrelaçamento espácio-temporal de acontecimentos e elementos heterogéneos, sobre a condensação e rarefacção de planos diegéticos autónomos que favorecem a constituição de um peculiar encadeamento narrativo, cuja intriga já não conta o desenvolvimento das acções, mas exprime momentos emotivos e sensações poéticas. Por outras palavras, A Well for the Thirsty não segue apenas o andamento horizontal da cronologia diegética do binómio acção-reacção, não respeita a estrutura canónica do edifício narrativo, mas constrói passagens líricas que permitem mergulhar no interior da história recente e no imaginário do povo ucraniano. Por esta razão, as imagens de Illienko parecem evaporar-se, desmaterializando-se ao ponto de o analogon fotográfico não parecer encontrar mais o próprio referente na realidade fenoménica, mas no mundo interior das personagens. O elevado contraste entre as luzes e as sombras, a inversão tonal do céu e das águas escuras e dos homens e das mulheres, cujos perfis se con-fundem com a deslumbrante candura das paisagens, acentuam a dimensão onírica do filme de Illienko. Também a câmara de filmar contribui para a erosão dos confins já lábeis entre o presente e a memória, a realidade e a imaginação, o índice e o símbolo, quer fique imóvel no interior da casa acentuando a bidimensionalidade, a lisura das superfícies como a parede, as janelas, o espelho e as fotografias, quer se mexa seguindo os olhares e os gestos das personagens no interior de uma paisagem árida e abstracta em que a câmara de filmar realiza panorâmicas com efeito de estranhamento onde aparece de forma contínua, contra qualquer lógica, a mesma personagem. A este propósito, basta pensar na cena em que a câmara de filmar mostra com um movimento semicircular os vários membros da família de Levko, regressando sempre ao grande plano do seu rosto absorto na observação do mundo que o rodeia, ou na cena imediatamente sucessiva em que se repropõe o mesmo movimento de câmara com os mesmos protagonistas imóveis, desta vez imersos num ambiente onírico que tem como protagonista a mulher defunta de Levko agora jovem ao lado do marido ancião.
Estas cenas permitem-nos debruçarmo-nos, ainda mais, sobre o carácter poético do filme de Illienko, não apenas pelo facto que cada imagem ser fruto da atitude de Levko perante o mundo, uma subjectiva indirecta livre para usar as palavras de Pier Paolo Pasolini [1965 apud Pasolini, 1972], através do qual Illienko se apropria do estado de alma e da psicologia da personagem do filme para que possa mostrar e legitimar o seu ponto de vista sobre o mundo, mas sobretudo pelas operações estilísticas postas em acto pelo próprio autor ucraniano. Consideremos, por exemplo, a sequência de imagens relativas à notícia da morte do filho de Levko, o Major Ivan Serdiuk: introduzida pela imagem em negativo de um avião, enquadramento esse em que domina o assincronismo entre a banda visual e a sonora, e seguida pelo intertítulo “CИH” (filho), novo capítulo do filme que se abre com o stop-motion de um avião militar em voo, secundada pela reiteração da acção de um carneiro que dá uma cornada à nora grávida de Levko, interpretada pela mesma actriz, Laryna Kadochnikova, que representa também o papel da mulher do protagonista masculino. Estes expedientes não fazem outra coisa que libertar o filme das constrições da verosimilhança, da lógica narrativa tradicional: prática possível graças à demonstração e exasperação dos elementos gramaticais e das operações sintácticas próprios da “língua da prosa” a favor da “língua da poesia” [cf. Pasolini, 1972], cujo lirismo encontra a sua justificação coerente na dimensão onírica, psicológica e visionária da personagem principal.
Contudo, o carácter poético do filme de Illienko, longe de encontrar a sua legitimação apenas nas palavras coevas de Pasolini, que escreveu em 1965 o seu célebre ensaio “O cinema de poesia”, é corroborado pelo facto de A Well for the Thirsty pertencer plenamente àquilo que foi definido como “cinema poético ucraniano”. Na verdade, ao lado de Tini zabutykh predkiv (Sombras dos Antepassados Esquecidos, 1965) de Sergei Parajanov, de que foi nomeadamente o director da fotografia, Illienko concebe nos estúdios de Kiev a ideia de um cinema poético promotor da renascença da cinematografia autóctone. Herdeiro dos princípios de Alexander Dovzhenko [cf. Denysenko apud First, 2015] com o qual partilha muitos aspectos formais e de conteúdo, o nascente cinema poético ucraniano aproveita da maior permissividade do regime soviético da era Khrushchev para se abrir à investigação da cultura local, favorecendo a (re)descoberta das tradições do mundo camponês ucraniano, sufocado por anos de opressão e carestias. Por esta razão, podemos definir Illienko como um etnógrafo que deambula pela região de Cherkasy à procura da autenticidade da vida campestre, dos cantos tradicionais daquela gente cuja memória mergulha nas vísceras da terra. Fazendo uma análise mais atenta, a sua prática de observação não se limita ao mero registo dos factos e dos costumes locais. Pelo contrário, o carácter poético do filme de Illienko nasce da união da tradição com a sua revisitação moderna, através da lente literária de jovens poetas contemporâneos ucranianos como Ivan Drach e Lina Kostenko [cf. First, 2015]. De resto, A Well for the Thirsty, longe de repropor fielmente os temas histórico-mitológicos da tradição popular ucraniana, traça um novo mapa do imaginário local contaminado agora por uma forte atitude autoral e por uma lógica mestiça que vê na fusão entre antigo e vanguardista uma profícua estratégia contra a homologação do poder central e a destruição de todas as culturas periféricas.
Bibliografia
Dubois, Philippe. L’Acte photographique. Bruxelas: Édition Labor, 1983.
First, Joshua.Ukrainian Cinema: Belonging and Identity During the Soviet Thaw. Londres-Nova Iorque: I. B. Tauris, 2015.
Merleau-Ponty, Maurice. L’Œil et l’Esprit. Paris: Éditions Gallimard, 1964a.
––– . Le visible et l’invisible. Paris: Éditions Gallimard, 1964b.
Pasolini, Pier Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 1972.