Oito anos depois da sua última longa metragem, Nie Yinniang (A Assassina, 2015) marca o regresso do maior cineasta vivo de Taiwan, Hou Hsiao-hsien. É um retorno e uma estreia: Hou volta ao cinema e a uma imaginada China de outrora [depois de Hai shang hua (Flores de Xangai, 1998)], e inicia-se no universo wuxia atrás das câmaras.
Num longo artigo dedicado ao filme, a revista Film Comment refere-se ao wuxia como uma “obra de arte total que pertence inteiramente à tradição chinesa”. De facto, se o género foi literário antes de ser cinematográfico, a verdade é que as estórias atmosféricas de guerreiros solitários e errantes, fantasias situadas num passado histórico distante e onde a rigidez de códigos morais era mantida por seres à margem, num mundo de caos e corrupção, foram matéria de alguns dos filmes chineses mais emblemáticos. Curiosamente muitos deles produzidos não na China continental mas em Hong Kong e em Taiwan. Eram filmes que um jovem Hou Hsiao-hsien devorava no cinema de bairro da cidade periférica onde cresceu em Taiwan.
Com um orçamento como Hou nunca teve e que lhe permitiu filmar este espectáculo visual em 35mm em vários locais – incluindo na província chinesa de Hubei, na Mongólia Interior e em Taiwan –, Nie Yinniang, uma co-produção da República Popular da China, de Taiwan e de Hong Kong, é, tal como Wo hu cang long (O Tigre e o Dragão, 2000), de Ang Lee, um épico de “Grande China.” Não deixa, contudo, de ser também um filme de Hou Hsiao-hsien sem grandes concessões.
Nie Yinniang é uma experiência onde o visual tem a primazia absoluta.
Nie Yinniang é um wuxia, mas um ainda mais contemplativo que Dung che sai duk (Ashes of Time, 1994), de Wong Kar-Wai. Desengane-se quem antecipa um filme de lutas frenéticas coreografadas como Wo hu cang long ou Shi mian mai fu (O Segredo dos Punhais Voadores, 2004). Nie Yinniang pode centrar-se numa assassina mas são poucas (embora cruciais) as cenas em que a vemos combater. É a espera, a máscara da infiltrada, o esconder de intenções e o reprimir de sentimentos que domina o filme. Não há muita acção – já lhe chamaram um “filme de inacção” –, e a narrativa é uma preocupação menor. Nie Yinniang é uma experiência onde o visual tem a primazia absoluta. A cor, os gestos, as paisagens, o guarda-roupa ou o mobiliário são tão minuciosos que quase esmagam o espectador com a sua beleza. Esta é tão superlativa que, sem os filtros que Hou usa para nos deixar permanentemente como outsiders, espreitando por frestas desse mundo (as cortinas, essas omnipresentes cortinas), sofreríamos uma overdose dessa sumptuosidade.
Além do que vemos, importa também o que ouvimos, sempre numa curiosa harmonia: o vento nas árvores, os pequenos insectos, o “som” das chamas… Uma cena de dança extraordinária remete-nos para outras (não análogas mas, ainda assim, comparáveis) na obra de Hou – da mesma maneira que o prólogo a preto-e-branco lembra outros momentos assim filmadas na obra do cineasta, nomeadamente em Hao nan hao nü (Good Men, Good Women, 1995). Por entre a solenidade das deixas declamadas e os quase murmúrios, não falta a Nie Yinniang momentos surpreendentes, como uma cena de horror ou até a figura de um estranho feiticeiro de barbas brancas que Hou parece tratar quase com refinado humor escolhendo Jacques Picoux, o artista plástico francês residente em Taipé, para o papel.
A figura central que dá título ao filme é Nie Yinniang (Shu Qi). Uma assassina profissional, treinada por uma monja após ter sido levada, ainda criança, da casa de seus pais. Anos depois é-lhe incumbida a missão de regressar à terra-natal, Weibo, para matar o primo, Tian Ji’an (Chang Chen), o senhor de Weibo, tido como problemático para a corte imperial. O regresso às origens confronta-a, porém, com a memória da sua infância e do seu prometido, que é precisamente o alvo a abater (e é precisamente a lutar que ambos acabam por estar mais próximos). A perícia calculada da sua profissão é testada pela incapacidade de negar a sua humanidade: passível de errar perante os objectivos maiores impostos num mundo de intrigas, de manchar a eficácia das suas acções com a pureza inadmissível do sentimento. Acima de tudo, do início ao fim, a enorme solidão de Nie Yinniang, excluída permanentemente das interacções humanas dos outros que presencia nas sombras. Todo o filme é uma meditação de como ela será capaz de tornar essa solidão na sua liberdade, e não apenas na prisão da lealdade à mestra ou das lembranças do passado.
O filme é baseado num chuanqi (um género de conto) do século IX e resultou de extensas leituras sobre a dinastia Tang – talvez a mais idealizada da História da China – depois discutidas entre Hou e o trio de argumentistas. Hou Hsiao-hsien foi, assumidamente, um consumidor ávido de literatura wuxia durante a juventude. A ideia de filmar uma história deste género foi um sonho que acalentou durante anos e que realizou, finalmente, quase com 70 anos. O resultado, longe de uma previsível adaptação de modelos conhecidos, é uma criação original e intrigante, tanto mais de Hou quanto reúne uma série de colaboradores do autor que muito contribuíram para a construção das suas obras. Antes de mais, a co-argumentista Chu Tien-wen, a escritora taiwanesa que há décadas assina os argumentos das obras de Hou e cuja voz de novo se descortina nos diálogos do filme – vários deles em chinês clássico – e o director de fotografia Mark Lee Ping-Bing. Mas falamos também do montador Liao Ching-song, do compositor Lim Giong e, claro, da dupla de actores protagonistas, Shu Qi e Chang Chen, o par inesquecível de Zui hao de shi guang (Três Tempos, 2005). Tendo Hou, como é seu hábito, filmado sem ensaios, o trabalho dos actores é notável mas a sua presença é tão suave que é como se qualquer percepção de interpretação fosse depurada até ao limite. Os actores são elementos de um todo onde o que dizem e o que fazem nunca se sobrepõe ao resto da composição.
Cada plano do filme é preparado tão meticulosamente que a sua riqueza pictórica desafia as potencialidades da ficção e se aproxima de um ideal de reconstrução do que possa ter sido um ambiente da dinastia Tang. Essa preocupação com a recriação possível do passado tem marcado várias das obras de Hou, mas desta vez as memórias evocadas não são de eventos históricos ou figuras específicas mas de toda uma tradição cultural através de uma homenagem artística ao wuxia. A obsessão com a história é aqui também uma obsessão com uma fantasia, já que reconstrução só pode ser imaginada. Nie Yinniang é, assim, uma concretização visual do impossível, algo só possível no cinema.