Para além de seres humanos do sexo masculino nascidos no planeta Terra, nomes como Jean-Luc Godard, Buster Keaton, Joe Dante, Monte Hellman, Ingmar Bergman, Wes Craven, Wladyslaw Starewicz, John McTiernan, Woody Allen, Jafar Panahi ou Abbas Kiarostami têm em comum o facto de em determinada altura das suas vidas cinematográficas terem dinamitado – cada um de acordo com os seus costumes – com a “quarta parede” e, passo seguinte, terem-se embebebado com os seus brinquedos de metaficção; Wes Craven, então, a partir dos anos noventa até sonhava em mise en abyme. Mas, estamos certos, nenhum foi tão longe nos seus propósitos desconstructivistas quanto a dupla Chuck Jones/Michael Maltese em Duck Amuck (1953), obra maior do cinema de animação.
Chuck Jones, como Tex Avery, Frank Tashlin ou o seu amigo/rival Bob Clampett, constituiu para a arte da animação cinematográfica norte-americana o Id de um gigantesco superego que adquiriu a sua forma humana num homem chamado Walt Disney, e lamentamos que os períodos de maior esplendor criativo de cada uma das partes não tenham coincidido temporalmente; quando Jones andava a fabricar relíquias em série no final dos anos quarenta até finais de cinquentas, já o Disney tinha fechado a loja com as suas obra-primas de trinta e sete a quarenta e dois. Nos anos oitenta, por altura do Gremlins (O Pequeno Monstro, 1984), tivemos um breve lampejo desta luta mental em tempo real, e hoje temos como ID o J.J.Abrams e como superego o J.J.Abrams. É o que há, e quando assim é…
Durante sete minutos a questão não é de haver “um plano, uma ideia”, mas sim a de “um segundo, uma ideia”, num registo abrasivo e delirante que se compraz no seu jogo auto-referencial, e já imaginamos o gozo que deve ter sido a manufacturação de tamanha alucinação.
…e quando assim é, é melhor recuarmos até 1953 quando o Jones e o seu argumentista Michael Maltese [também responsáveis por outra genialidade chamada What’s Opera, Doc? (1957)] agarraram nos dois maiores ícones animados da altura e trataram de fazer uma terraplanagem à gramática do cinema. Durante sete minutos a questão não é de haver “um plano, uma ideia”, mas sim a de “um segundo, uma ideia”, num registo abrasivo e delirante que se compraz no seu jogo auto-referencial, e já imaginamos o gozo que deve ter sido a manufacturação de tamanha alucinação. Satisfação malévola e de escárnio, como deve de ser, bem presente na última imagem do filme, quando o deus ex-machina faz a a sua aparição, revelando a causa de tamanhas provações do Daffy Duck.
Grandes planos, cenários, manipulação sonora, falhas no projector, alteração constante de apresentação, eis alguns dos tópicos audiovisuais sabotados por Jones, e como temos algumas dúvidas de que o Hellman ou o Bergman tenham sido fãs do Chuck, resta-nos lembrar a homenagem do grande jonesiano do cinema norte-americano em carne e osso, Joe Dante, quando no Gremlins 2: The New Batch (Gremlins 2: A Nova Geração, 1990) teve a ousadia de queimar a película e interromper a livre circulação da história, festarola inventiva prontamente rectificada com a acção do canastrão Hulk Hogan. Este texto está a ser escrito num teclado recheado de letras e de outros símbolos.
Voltando ao parágrafo inicial e ao maralhal que por lá anda, a tão subtil como marcante diferença dos seus trabalhos para uma obra como Duck Amuck centra-se na simples apreensão de que a metaficção no filme de Jones não é um mero comentário, aparte, ironia, estudo, diálogo formal ou o que se quiser catalogar; a dita metaficção é o próprio filme. Não há desvio algum ao mundo proposto nesses sete minutos, fugindo-se a todo o vapor, por exemplo, da visão complacente e preguiçosa do Craven das piores colheitas (os dois últimos Screams, por exemplo…). A liberdade criativa e a flexibilidade plástica do desenho possibilitam, é certo, tanto um maior controle do artista como um maior maravilhamento/tolerância do espectador, mas estamos seguros de que se fosse o Apichatpong Weerasethakul a andar por estas bandas, o Daffy Duck meter-se-ia numa gruta e sairia de lá aos beijos com um tigre a cantar Tonicha. Não percebemos muito bem a relação entre as duas coisas, mas também é certo que ainda não jantámos.
Charles Martin Jones morreu em 2002, não sem antes, em 1996, ter recebido uma estatueta dourada honorífica, perante uma sala de pé e em gostoso aplauso. Nessa plateia, um dos mais efusivos é essa criança grande chamada Quentin Tarantino (abençoado), que, temos a certeza, cresceu como nós a ver as intermináveis e surreais disputas entre Wile E. Coyote e Road Runner, duas das maiores criações fictícias do século XX, a par do Gregor Samsa, João de Deus ou do Dr. Américo Tomás. Só por eles os dois e por Duck Amuck, Jones já entraria na história.
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