Às 8 da manhã, o bar do Cinema City Alvalade já está aberto. Durante toda a manhã, horas antes das primeiras sessões, passam por aqui alunos da Eugénio dos Santos, mesmo ao lado do cinema, e alguns clientes habituais, mais velhos, residentes do bairro de Alvalade. Alguns talvez se lembrem ainda da velha sala, com dois balcões, três foyers e 1500 lugares, inaugurada em 1953. Abriu com um filme brasileiro, O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, e seria explorada pela SIMO (da Lusomundo e Castello Lopes). Ali passou muito cinema americano, por vezes em estreias simultâneas com o São Luiz. Como explicou Lauro António: “quando as primeiras bobines do filme de fundo acabavam de passar no São Luiz, um estafeta motorizado arrancava com elas para o Alvalade, quase no outro extremo da cidade. Durante anos, Elizabeth Taylor e Richard Burton, Marlon Brando, David Niven e Doris Day, entre milhares de outros actores, cruzaram as avenidas de Lisboa, em viagens relâmpago.”(1) Nos anos 1960, e novamente com o São Luiz, o Alvalade acolheu vários ciclos de cinema Casa da Imprensa organizados por Vasco Granja e Lauro António.
Durante anos, Elizabeth Taylor e Richard Burton, Marlon Brando, David Niven e Doris Day, entre milhares de outros actores, cruzaram as avenidas de Lisboa, em viagens relâmpago. (L.A.)
Centro importante da vida de bairro em Alvalade, o cinema fecharia as portas em 1985, acabando por ser demolido depois de ali ter funcionado uma igreja durante alguns anos. No mesmo local, surgiu em 2009 o actual prédio de habitação e escritórios com 4 salas de cinema, exploradas desde então pela cadeia Cinema City.
A grande alegoria da 7ª arte pintada por Estrela Faria é o único elo de ligação entre os dois edifícios e deu o mote para o período em que o cinema se chamou “Cinema City Classic Alvalade” e passava muito mais cinema de autor. Aquela parte do nome caiu entretanto e o CC Alvalade passou a incluir cada vez mais sucessos de bilheteira na sua programação. Mas não deixou de acolher vários festivais de cinema, entre os quais o Israelita, nacionalidade também da empresa Cinema City (como vimos na crónica anterior, sobre o CC Campo Pequeno). E também não perdeu a decoração com réplicas de estátuas neoclássicas, grandes candelabros e enormes reproduções de pinturas renascentistas e barrocas com molduras douradas que enfeitam os tectos do átrio principal e das quatro salas.
A visita das cabines de projecção é conduzida por Filipa Pinheiro, 28 anos, gerente do CC Alvalade. Natural de Évora, Filipa fez o curso de Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Trabalha neste cinema desde 2009, vinda do Cinema City Campo Pequeno. Foi ali que ainda chegou a aprender a projecção em película com um grupo de colegas mais velhos que assegurou o arranque das salas do Campo Pequeno.
Partimos do gabinete de Filipa, o primeiro com vista, e com luz natural, que encontramos até agora. Situa-se no piso superior, contíguo às cabines, mas colado ao tecto do átrio e do bar do cinema, de que se encontra separado por uma grande parede de vidro. Daqui pode ver-se todo o movimento nas mesas e nas bilheteiras lá em baixo, os cartazes dos filmes em exibição e, além deles, o trânsito na Avenida de Roma.
O percurso, em círculo, leva-nos da cabine da sala 4 até à da sala 1. Cada espaço é amplo e despojado. Em cada cabine, ao lado do projector digital, um NEC 2000C, com um servidor Doremi, permanecem ainda os projectores de película de 35mm, quatro Prevost P93A, italianos (“A” de automático: torres de objectivas e mudança de janelas motorizadas) e quatro conjuntos de pratos horizontais Xetron. Como noutros cinemas que já visitámos, as duas tecnologias coexistem ainda lado a lado, embora o uso dos projectores 35mm seja cada vez mais raro.
A meio do percurso, o habitual centro de controlo informático onde se recebem filmes através de uma rede de comunicação privada. A maior parte dos DCPs, no entanto, continua a chegar em discos rígidos que depois alimentarão os servidores de cada projector digital. Um trabalho feito todas as quarta-feiras, explica Filipa, véspera do dia de estreias. Depois disso, repete-se a rotina habitual dos multiplexes digitais, ligando os equipamentos no início do dia e desligando tudo após a última sessão. A manutenção dos projectores é assegurada por um técnico da Cinema City que passa o ano “na estrada”, correndo as salas da empresa espalhadas pelo país (de Leiria a Setúbal, passando por Lisboa, Sintra e Alfragide). As mensagens e os avisos deste técnico “invisível” estão um pouco por todo o lado, afixadas nas paredes, nos equipamentos informáticos, nos sistemas de ar condicionado e nos próprios projectores.
Uma das pessoas que assegura a projecção digital é Luís Stoffel, 23 anos. No CC Alvalade desde Agosto de 2014, Luís estudou cinema documental na Escola Superior de Tecnologia de Abrantes (ESTA). Começou a trabalhar após duas semanas de formação e aprendizagem com Filipa. Cinéfilo, Luís tira partido dos festivais que o CC Alvalade acolhe e lamenta não poder ir mais frequentemente à Cinemateca. É o exemplo de uma geração muito nova, muitas vezes com cursos superiores, mais ou menos cinéfila, mas já distante, para o melhor e para o pior, da memória da projecção em película e da história dos velhos cinemas onde trabalham. (Luís deixou entretanto a CC Alvalade.)
Se as cabines dos projectores 2, 3 e 4 são espaços industriais, onde a presença humana parece dispensável e deixa poucos ou mesmo nenhuns vestígios, na cabine do projector 1, o caso muda de figura. Acumulam-se aqui as prateleiras de materiais sobresselentes dos projectores digitais, mas também caixas e caixas de rolos de película com trailers, pontas de empresas distribuidoras e os anúncios de uma estreia que teria lugar “brevemente”; ou as ferramentas obsoletas da projecção em 35mm como coladeiras e uma grande enroladeira eléctrica. Um conjunto de cacifos é aberto e fechado ininterruptamente pelos vários colaboradores do cinema, arrumadores e pessoal de apoio do bar: estamos a poucos minutos do início das primeiras sessões do dia e da entrada do primeiro turno. Quase todos perguntam à Mariana se devem tirar uma mochila ou um casaco do caminho do enquadramento da fotografia. Mas não é preciso, não, muito pelo contrário. Apesar de todas as mudanças que o tempo e a projecção digital trouxeram, todos os sinais que mostram como as cabines de cinema continuam a ser espaços de trabalho vivos e habitados são preciosos.
Fotografias de Mariana Castro
Agradecimentos: Andreia Pinto, Filipa Pinheiro, Luis Stoffel, Jorge Dias.
(1) Lauro António, Teatro São Luiz (CML: Lisboa, 2001), p. 40.
Sem Comentários