Nunca existiu uma definição realmente consensual sobre o que um documentário pode ou deve ser, e as recentes experimentações que o género tem conhecido apenas ajudaram a aumentar a base da discussão à volta dessa definição. Desde que Robert Flaherty encenou a construção de um iglu várias vezes para apanhar os melhores ângulos dessa recriação em Nanook of the North (Nanuk, o Esquimó, 1922), que a discussão passa quase sempre pela complicada associação do documentário a alguma expectativa de correspondência com a verdade por parte do espectador.
Mesmo considerando a utilização de documentos (visuais, literários, etc) como um ponto de partida comum, não faltam diferentes abordagens sobre o que um documentário pode ser. Desde o estilo de testemunha invisível de Frederick Wiseman (direct cinema) às recriações encenadas de partes de uma história de Jean Rouch (cinéma verité), ou até à utilização de actores não profissionais para dar corpo a uma história imaginada mas representativa da realidade, como fez Lionel Rogosin, a interpretação da verdade multiplica-se. Num género com diversos e variados subgéneros, os limites da classificação do que é um documentário, que passam também pela fronteira entre o real e a ficção, são continuamente explorados. Stories We Tell (Histórias que Contamos, 2012) é um exemplo recente dessas permutações, ao confundir deliberadamente uma visão pessoal com a objectividade, onde Sarah Polley transforma um documentário em algo íntimo e simultaneamente universal.
A história parece simples. A mãe de Sarah Polley morreu quando esta tinha apenas 11 anos, e as memórias de Polley da mãe são escassas. A maior parte dessas memórias resiste através das histórias que os seus familiares lhe contam, e em particular o seu pai (Michael), com quem Polley mantém uma relação próxima. Polley entrevista o pai para o filme mas vai além disso, ao filmar uma narração do pai sobre os acontecimentos, que funciona como uma linha narrativa para as imagens. Ao longo do filme Polley regista também entrevistas com membros da sua família alargada, como os irmãos saídos do primeiro casamento da sua mãe, com depoimentos que vão compondo um retrato emocional e afectivo. Ficamos a conhecer os problemas do casamento dos pais de Polley, a depressão da mãe e o afastamento em relação ao marido e, quando surge um outro homem que pode ter tido uma relação com a mãe de Polley e que pode na verdade ter sido o seu pai biológico, o mistério adensa-se.
Se a história parece verdade, mesmo com as suas enésimas variações, a forma como Polley conta essa história é tudo menos simples, porque ilude-nos com uma representação dos eventos.
Polley utiliza também algumas imagens de arquivo, de home movies para ilustrar as palavras que ouvimos. Se estas gravações parecem ser por vezes demasiado fortuitas e oportunas, por capturarem momentos-chave, como uma discussão entre os pais ou um encontro num bar, não temos razão para duvidar da sua veracidade. Polley começa no entanto o filme logo a desarmar o dispositivo das entrevistas, a mostrar a sua encenação, como a preparação das “testemunhas”, com o microfone a surgir no enquadramento, ou a própria Polley filmada atrás da câmara. Porém, é apenas quando perto do fim é revelado que as imagens caseiras eram afinal encenações falsas com recursos a actores, que o filma ganha outra dimensão. Se a história parece verdade, mesmo com as suas enésimas variações, a forma como Polley conta essa história é tudo menos simples, porque ilude-nos com uma representação dos eventos. É como se a realizadora acreditasse que necessitamos dessa encenação para ficar mais perto da história e, principalmente, como se ela própria tivesse necessidade de capturar uma memória visual da mãe que fugiu, que evaporou-se.
Sobre esta questão, considere-se Er shi si cheng ji (24 City, 2008) de Jia Zhangke. Filmado como um documentário, com imagens de arquivo e depoimentos das pessoas envolvidas, conta a história de uma cidade chinesa onde uma fábrica contribuiu para o florescimento da população local, e que agora ao ser encerrada sinaliza o declínio dessa cidade e do futuro dos seus habitantes. Zhangke mostra-nos as histórias das vidas difíceis de alguns trabalhadores, com depoimentos e imagens da cidade antes e agora. Só quando reconhecemos um desses trabalhadores como um actor profissional é que o filme revela-se como um artifício, uma história falsa filmada como verdadeira, mas que sendo falsa podia bem ser verdadeira, porque corresponde a uma realidade que acreditamos ser possível: quando uma mãe conta como foi separada do seu bebé durante uma viagem, acreditamos porque assumimos que podia ter acontecido naquelas circunstâncias. Polley e Zhangke parecem defender que os documentários não têm necessariamente que ter uma ligação obrigatória ou imediata com a verdade: podem usar imagens reais para construir uma narrativa imaginada, mas também podem ser construídos a partir de imagens encenadas para contar uma história real. O que é necessário é que o resultado assemelhe-se à realidade que conhecemos, que pareça verdade – e aí o que está em causa é a nossa percepção da realidade, formada através dos media, das notícias, das imagens que encontramos. Afinal, basta que a realidade presente num documentário seja verossímil para o espectador, mesmo que longe de uma verdade objectiva.
Diversos documentários percorreram este caminho traiçoeiro da confusão entre a realidade e ficção. Com F for Fake (F de Fraude, 1973), Orson Welles realiza um filme sobre fraude e falsificação, baralhando de forma desconcertante as expectativas do espectador; com Ningen Jôhatsu (A Man Vanishes, 1967), Shôhei Imamura investiga o desaparecimento de um homem recorrendo a depoimentos que revelam as fragilidades da memória e das diferentes versões com que cada um tenta recordar factos passados; com Exit Through the Gift Shop (Banksy – Pinta a Parede!, 2010) Banksy diverte-se a construir mentiras como verdades e vice-versa. Se os realizadores iranianos Abbas Kiarostami e Jafar Panahi ficaram conhecidos por explorar essa fronteira entre a ficção e o real nos seus filmes, o nome mais associado a este movimento será Werner Herzog. O realizador alemão recorria frequentemente a encenações para atribuir uma credibilidade emocional aos seus documentários, para chegar ao que definia como o êxtase da verdade, uma verdade com maior impacto – um método que Stories We Tell parece querer seguir.
A certa altura do filme, depois de ser revelado que o pai biológico de Polley é afinal Harry – um homem que ela não conhecia, e não Michael, com quem ela tinha crescido a pensar que era o seu pai -, um jornalista avisa Polley que vai publicar a descoberta. O próprio Harry parece decidido intrometer-se, ao revelar o desejo de publicar um artigo com a sua versão da história. Mas Polley reclama para si, e para este filme, a propriedade da história, que é no fundo a propriedade dessa memória. É também por isso que Polley dá destaque à narração de Michael, que pode assim apresentar as suas reminiscências por oposição às outras versões, num gesto significativo. Com Stories We Tell, a história é verdade, mas a forma como somos iludidos pelas imagens evoca o papel traiçoeiro da memória como algo falível. Depois de resolvido o mistério do pai biológico de Sarah Polley, o último terço do filme dedica-se à forma como a história é contada, e da necessidade de a partilhar.
Em discurso directo, Polley afirma que a verdade sobre o passado é muitas vezes efémera e difícil de definir. Polley questiona-se mesmo se terá perdido a cabeça ao tentar reconstruir o passado através das palavras de outras pessoas, obcecada por uma tentativa impossível de reconstruir algo perdido para sempre, de algo que lhe escapou. Estas dúvidas remetem para a necessidade de registar a história no tempo, antes que essas memórias sejam apagadas. É assim notável recordar o primeiro filme realizado por si, Away from Her (Longe Dela, 2006): uma história sobre um casal idoso, em que a mulher sofre de Alzheimer e acaba por transferir os seus afectos para outro homem no hospital, esquecendo o marido que a visita todos os dias. Mas lembramo-nos também do filme que catapultou Polley para a fama enquanto actriz, The Sweet Hereafter (O Futuro Radioso, 1997) de Atom Egoyan: a história de uma pequena povoação onde um acidente com um autocarro escolar deixa apenas uma jovem sobrevivente, forçada assim a encarar o futuro de forma diferente, enquanto um advogado ouve versões diversas do que aconteceu para tentar fazer sentido do presente – como se o passado fosse impossível de escapar, mas também um ponto de partida.
Stories We Tell de Sarah Polley é exibido dia 19 de Março às 18h no Porto, pelo Cineclube do Porto, na Casa das Artes.