É para voltar para trás. E servir outra. Porque cabelos na sopa não dá. Mas aqui o caldo é de imagens e é o olho que come. E neles, nos cabelos, podemos ver tudo. A paisagem de um amor (e)terno, por exemplo. É Baudelaire que a canta assim, em Um Hemisfério numa Cabeleira: “Se pudesses saber tudo aquilo que vejo! Tudo aquilo que eu sinto! Tudo o que ouço nos teus cabelos! A minha alma viaja por sobre o perfume como a alma dos outros homens sobre a música”. Os cabelos são uma topografia que o cinema não descarta. A viagem que propomos é esta.
Volto ao La petite marchande d’allumettes (A Vendedeira de Fósforos, 1928). Já lhe tinha roubado um plano para estes deleitosos exercícios da Sopa aquando do tema da neve. Não se pode dizer que seja preguiça da minha parte, ou sequer falta de imaginação. É uma espécie de aluimento emocional que nutro por este pequeno, simples – mas não singelo – e tão encantatório filme. Desta vez, escolho um plano que se agita invisível, ao sabor de uma cavalgada nas nuvens (um dos planos que resultaram de delírios técnicos, experimentalismos, neste e noutro filme mudo de Renoir, La fille de l’eau, de 1925). Catherine Hessling, sempre ela, a menina dos fósforos, já não vive – no tempo deste plano. Recordando-vos o conto homónimo de Hans Christian Andersen em que a curta-metragem se inspira, uma vendedora de fósforos, numa noite gélida de passagem de ano, encolhe-se num canto da rua, procurando aquecer-se com fósforos, talvez na ilusão de que esse calor fosse suficiente para fazer nascer um sonho. Assim foi. Ao adormecer para a morte, esta doce morte, eis que o cabelo escondido debaixo do chapéu, surge nas imagens do sonho como um íman para os nossos olhos – são cabelos muito longos, atraentes (tantas vezes pintados por Pierre-Auguste Renoir) e com uma luz que os ensina a existir cinematograficamente. Neste plano em particular, esses cabelos soltos são símbolo da liberdade selvagem no sonho da morte. Agitam-se com sensualidade, num corpo que já não está, e que por isso os abandona ao gesto do vento. No final, o único vestígio que fica preso num botão da farda do cavaleiro, é uma madeixa do cabelo da menina dos fósforos.
Inês Lourenço
Carol é perseguida pelo suposto assassino à solta no thriller de Lucio Fulci, Una lucertola con la pelle di donna (Serpente com Pele de Mulher, 1971). A tensão aumenta quando esta se vê encurralada numa arrecadação esconsa, que parece há muito não conhecer visitante. O homem procura arrombar a porta. E Carol, a cada arrombo, vai vendo o seu destino traçado. A construção de Fulci é de mestre. Num close up, vemos Carol a cravar as unhas na palma das mãos. O medo toma conta dela. A tensão leva-a a recuar, penetrando assim mais um pouco na escuridão. Toda esta agitação desperta os únicos habitantes do lugar: uma família de morcegos que, assustada, esvoaça para todo o lado. Os nervos e o terror atingem o seu clímax quando os morcegos, um atrás de outro, se lançam ao rosto da protagonista. De súbito, um deles fica preso no cabelo de Carol. Ela grita a plenos pulmões e desesperadamente procura soltar o bicho que continua a bater as asas. Ela está presa, ele está preso. Ele quer sair, ela quer que ele saia. E ela quer sair dali, porque a morte espreita. É dos momentos mais arrepiantes da história do cinema. Fulci goza de prazer sádico ao tornar o terror num arrepio que nos percorre a espinha.
Luís Mendonça
No seu primeiro filme, Romero limitava-se a reflectir o seu tempo e a sociedade de então dentro da casa (como qualquer bom filme de cerco à la Hawks), não fazendo portanto considerações sobre os monstros que lá estavam fora, apenas catalisadores para os comportamentos extremados dos que lá estavam dentro (acima de tudo, o que terá interessado a Romero era a atmosfera da luta pelos direitos civis e o racismo, onde o final é muito devedor do assassinato de Martin Luther King um ano antes da rodagem). Mas pouco demorou até que a profundidade dos monstros babosos crescesse – “the whole point was you can’t tell who’s nuts and who’s not in today’s world“. Se é o caso de que os filmes de Romero são muitas vezes manifestos políticos [o racismo no primeiro, o consumismo estupidificante no segundo, a política do medo da era Bush em Diary of the Dead (Diário dos Mortos, 2007) – Romero resumiu isto como “I don’t really care about who the characters are and what they do, I’m much more concerned about getting in some observations underneath it”], também se dá que todos os seus filmes depois de The Crazies (Guerra ao Vírus da Loucura, 1973) reflectem sobre aquilo que há de animalesco em nós, ou melhor, sobre aquilo que se perde do constrangimento social quando o animal/monstro toma o poder. Deste modo, o remake de Night of the Living Dead (A Noite dos Mortos-Vivos, 1968), escrito pelo próprio Romero, termina exactamente com este comentário: quando a protagonista observa uma trupe de rednecks a divertirem-se disparando sobre uns mortos-vivos dependurados. O mesmo final é depois repetido, naquele que é talvez o melhor título da série, Diary, só que desta vez o dependurado é uma morta-viva presa pelos cabelos baleada por um tiro de caçadeira que a decapita. Como o próprio Romero admitiu, os zombies sempre lhe desenvolveram alguma simpatia e o facto é que, com excepção do primeiro filme, os mortos-vivos são figuras dramáticas e progressivamente mais humanas, ao passo que os humanos, esses, mostram-se cada vez mais monstruosos.
Ricardo Vieira Lisboa
“Nós não procuramos a verdade, procuramos a nossa Ariane. E em que condições Deus dos Céus!”, disse João de Deus a Rosarinho poucas cenas antes de lhe esgarçar o cu. Num filme de provações e pintelhos organizados como pensamentos, talvez seja um eufemismo para as intenções de Monteiro retirar da sua A Comédia de Deus (1995) os caracolinhos da menina para se vos apresentar aqui. Ou nem tanto. Parte da cruz de Monteiro, sobretudo na sua trilogia, foi o de procurar a sua Ariane. Mas esta nunca podia constituir-se apenas pelo singelo fio da lógica e da orientação, que é como quem diz, nunca poderia decidir se os seus filmes são apenas e só filmes-pintelho ou filmes-cabelo. A ternura da canção a Rosarinho, a fita amarela que coloca no cabelo de Virgínia para que se não solte ou, mais tarde, a forma como limpa os ovos do corpo de Joaninha pertencem a esse espaço de transição entre a homenagem à sagrada deusa e a manipulação da sórdida puta. Porque a alta cultura nada é sem a baixa nos filmes de César Monteiro, também a musa nada é sem a ninfa, o infantil gelado sem a sua sombra fálica ou, claro, o cabelo sem o complemento do pintelho. Essa junção de louco e de visionário, Monteiro organiza-a mais claramente no seu filme do meio da trilogia de Deus o qual, tendo comédia no nome, é o que menos vontade de rir dá. O cabelo das suas pequenas Arianes joga sempre esse papel intermédio da suprema e séria comédia. Acariciado e admirado como sempre aconteceu com esse símbolo da feminilidade, mas também cuidado e higienizado (“Não vamos usar o shampoo anti-caspa, tens o cabelo sedoso e vê-se que lavadinho”) para evitar desgraças de saúde pública. E nessa corda bamboleante entre o puro e o impuro, o realizador, como hábil equilibrista, desfruta e espanta.
Carlos Natálio