Eram 11 da manhã, mas ainda era demasiado cedo para a nossa conversa. Olá Charles, tudo bem? É um prazer conhecer-te. Como tem sido a tua estada aqui na Galiza? A pergunta é de circunstância e não pedia mais que uma correspondente resposta de circunstância, mas o que disse este seráfico homem negro que aparenta ter menos vinte anos que a sua idade real vai-se revelar mais que isso. O rosto é jovem, mas o cansaço é indisfarçável e a resposta poderá ter sido pouco “circunstancial”, mas foi honesta e serviu de aviso: “Tem sido boa, mas precisava de dormir mais”. Diz isto enquanto esfrega as mãos na cara. As noites são longas em Espanha. Não podia haver noites curtas quando se celebra na bela cidade de Tui, na décima segunda edição do festival Play-Doc, a obra irregular, mas fulgurante, de um “cineasta incómodo”. Este é o epíteto que baptiza a retrospectiva – e é também o título do valioso livro que a Shangrila e Play-Doc Books editaram.
Nos intervalos das minhas obrigações de jurado do prémio CAMIRA (sobre as quais irei escrever algo em breve), procurei espreitar o programa, que inclui os quatro filmes escritos, produzidos e realizados por Charles Burnett, filmes em que este teve controlo total – ou perto disso – sobre o resultado final: Killer of Sheep (1977), My Brother’s Wedding (1983), To Sleep with Anger (1990) e When It Rains (1995). À volta desta retrospectiva, a realizadora afro-americana Akosua Adoma Owuso programou um ciclo com o feliz nome Avant-Gutter, que dá conta da influência de Burnett no cinema negro norte-americano contemporâneo, sobretudo proveniente de Los Angeles.
O tempo era curto para acompanhar este entusiasmante programa dedicado a Burnett. Mas fiz por isso. De qualquer maneira, ir ao Play-Doc e deixar passar a oportunidade de falar com um dos nomes maiores do cinema independente norte-americano teria sido algo que não iria conseguir perdoar a mim mesmo no futuro. O entrevistado estava cansado, porque dormiu pouco. A entrevista não seria “a” entrevista que todos desejaríamos, mas ela tinha de acontecer. Tinha em mãos um guião com perguntas que andei a preparar na madrugada anterior – estava solidário contigo na necessidade de dormir mais, caro Charles. A primeira questão dizia assim: “Permita-me começar com uma provocação: quantas entrevistas deu que não abordaram questões de raça nos Estados Unidos?”. Burnett voltou a esfregar as mãos na cara. Virou os olhos para cima à procura de uma resposta escrita no céu – ou no tecto, para ser mais preciso. Da voz pausada e olhar gentil, mas também perdido, saiu uma reacção: “Essa é mesmo provocadora… não sei mesmo dizer…” A minha entrevista começava – tenho de admitir – com uma questão que dizia menos ao entrevistado que ao entrevistador.
O problema da “negritude” (blackness) é evidentemente central na obra de Burnett, mas o que no seu cinema incomoda – para retomar o tal adjectivo encontrado pelos programadores do festival – é o facto de este, em contra-corrente com muito do cinema politicamente engajado que se fizera até então, não usar a questão da raça como uma bandeira. Na realidade, ousaria dizer que em Burnett, como noutro cineasta seu amigo e com quem colaborou de muito perto, Billy Woodberry, as questões do homem negro são, antes de mais – e muitas vezes, “depois de tudo” -, questões de um homem ponto. O “homem ponto” não é um homem fechado, definitivo, “retórico”, mas um homem aberto, imperfeito, que respira o ar que todos os outros homens respiram. Burnett não faz “guerrilla cinema” e o seu statement mais audível é que não há statement algum além daquele que não pára de nos lembrar que “um homem é um homem é um homem”. As suas personagens enfrentam-se consigo, com as suas circunstâncias, mas não carregam fardos históricos, não debitam discursos de ódio com destinatário certo na ponta da língua, nem agitam “bandeiras” 24 horas por dia.
A cor da pele não importa? Claro que importa. Infelizmente importa e não deixa de importar na América de hoje, mas Burnett é um humanista dentro da melhor tradição neo-realista. A câmara encontra o homem e segue-o. Se o seu dia-a-dia lhe oferece uma série de quadros corriqueiros que dizem aparentemente pouco sobre os séculos de opressão da população negra se calhar é porque não é preciso dizer nada quando a vida revela nos pequenos gestos o tudo que a própria História ainda não tornou legível. Mas que ninguém se iluda: os filmes de Burnett são minuciosa e criteriosamente construídos. É uma espontaneidade preparada, atenta ao lugar de cada gesto, como se comprova neste ensaio audiovisual de Adrian Martin e Cristina Álvarez López. Os seus filmes são “arte a imitar a vida”, como me chegou a explicar a propósito de Killer of Sheep. A narrativa espontânea, mesmo assim, é uma narrativa. Mesmo que completamente avessa ao plot hollywoodesco.
Burnett nunca deu uma entrevista em que a palavra “Afro-American” ou “negro” não tivesse sido proferida. O exercício de conduzir uma conversa com ele sem falar de “raça” teria sido apenas um devaneio teórico da minha parte, completamente irresponsável face à oportunidade que ali me era oferecida. Provocação feita, era tempo de avançar para as questões duras. Um jovem afro-americano que quer documentar a vida em Watts, Los Angeles. Mas o cinema norte-americano, nesta altura ainda mais do que hoje, parecia ser uma coisa “whites only”. Como explicar, então, a opção pela câmara de filmar? O grande fotógrafo Gordon Parks, que com The Learning Tree (1969) assinou na qualidade de realizador, argumentista e até compositor musical a primeira produção negra em Hollywood, havia dito que a câmara era a melhor arma que encontrara para combater o racismo. As suas câmaras de fotografar e depois a de filmar serviram, como disse, para contrariar “um passado deformado e um futuro incerto”.
Burnett usou a sua câmara com o mesmo intuito, mas fê-lo empurrado pela urgência de não deixar passar em branco as humilhações por que ele e os seus irmãos negros passaram desde as carteiras da escola. Ainda se sente mágoa nas suas palavras quando este conta o dia em que o seu professor de liceu resolveu dizer a cada aluno da turma o que o futuro lhes reservava. O professor sentenciou: ele não era incerto para o jovem Burnett, muito pelo contrário, ele era tão certo quanto o tom escuro da sua pele. Burnett ia ser um falhado; mais um negro “sem futuro” que passaria por aquela sala de aula, por aquela escola, por aquele bairro, por aquela cidade… Burnett saiu dessa aula com a certeza de que tinha de fazer alguma coisa, algo que desse a volta à premonição do seu professor. Não era a raiva que o movia, mas a necessidade de se afirmar como uma pessoa humana que não está pronta a ver os seus sonhos marcados – como o gado e o ferro em brasa – pela estúpida evidência do seu tom de pele. Muito antes de filmar Killer of Sheep, Burnett afirmava para si uma certeza quanto ao futuro: não mais o homem negro poderia ser tratado como “carneirada” na fila de espera para um futuro privado de sonhos.
Apesar de na altura ainda não conhecer a obra de Paul Robeson, Oscar Micheaux e Spencer Williams ou Gordon Parks e as fotografias icónicas que produziu, como Man Peeking from a Manhole, Burnett punha a cabeça fora da valeta (gutter) antes de toda a gente e aventurava-se no mundo dominado pelos brancos – falo, claro está, também no mundo do cinema. Ele será o ponta-de-lança da LA Rebellion, movimento estético e político nascido em 1965 nas periferias de Los Angeles na ressaca da insurreição da população negra de Watts, uma batalha campal contra a polícia que durou 6 dias. Como é que a beleza pode servir a política? A pergunta impunha-se por causa do preto-e-branco granulado e contrastado, intensamente belo, para usar uma expressão de Cristina Álvarez López e Adrian Martin no já citado ensaio audiovisual, que marcará cada plano seu com o rigor da still photography. “Uma coisa que eu gosto da fotografia é que as pessoas ficam a olhar para o frame durante horas e retiram sempre qualquer coisa diferente quando olham, porque a fotografia captura o momento”, diz-me Burnett.
Several Friends (1969) e Horse (1973), as suas duas primeiras curtas-metragens, servem de ensaio para aquela que é considerada por muitos a sua magnum opus: Killer of Sheep, filme estreado em Portugal no IndieLisboa no já longínquo ano de 2008 – impunha-se, na minha opinião, uma retrospectiva alargada da obra de Burnett, e dos outros cineastas da LA Rebellion, em Portugal. Este filme esteve remetido ao mundo dos festivais e cineclubes durante décadas, devido a um problema de direitos de autor ligados a uma música, o que impediu que este entrasse no circuito comercial de salas. O restauro levado a cabo pela Milestone Films em 2007 permitiu ao mundo redescobrir um dos tesouros mais bem escondidos na história do cinema norte-americano.
Filmado em Watts, portanto, na sua terra e com as suas gentes, Burnett produz o retrato da vida familiar de um homem negro, cuja profissão dá nome ao filme. Filma-o seguindo duas ideias. Primeira ideia: filmará esta comunidade “cheio de revolta mas sem ódio” – palavras que o próprio Burnett usa para descrever esse magnífico filme, que também permanece por descobrir em Portugal, chamado Nothing But a Man (1964). Segunda ideia: “em momento algum se aproveitará das suas personagens” – lição que lhe foi transmitida por um dos seus mentores, o documentarista inglês, da escola de John Grierson, Basil Wright. Um olhar justo e belo podem ser incomodativos? De novo, a palavra “incómodo” incomoda.
Falando de heranças fílmicas, apetece dizer que Burnett é e não é como Spike Lee. Nos dois, o cinema imita o temperamento do realizador, portanto, a dócil e sábia serenidade de Burnett não se compagina com ruidosas declamações políticas. A “raça” não é uma bandeira, está demasiado pegada ao corpo – à pele – para ser algo mais do que, de facto, é. Os homens em Watts tentam viver, vão lutando, mas também vão vivendo. Vivem lutando e lutam vivendo. Mas a vida no ecrã seria estranha – artificial de mais – se estivesse sempre em “modo de comício”. Burnett não é como Spike Lee. Mas Spike Lee também é como o seu cinema, por isso, Burnett é como Spike Lee, dois grandes cineastas norte-americanos que, incómodos ou incomodados, reagem.
Posto isto, é tempo de voltar ao rosto jovem deste homem de setenta e dois anos. A idade engana, mas nele – vou descobrir durante a nossa conversa – está contido, como num mapa, todo um árduo trajecto de vida. Esta é a vida de um homem negro que se tornou incómodo só na medida em que nunca abdicou de ser um criador e de ser um criador livre. Depois do acto de liberdade chamado Killer of Sheep, Burnett enfrenta ventos e marés para continuar a filmar. Filmará curtas, ficções docu-dramáticas e irá procurar financiamento directamente à televisão (por exemplo, no Disney Channel). Muitas vezes, é confrontado com a mesma intolerância que o empurrara para o cinema. A agitação da sua vida terá a sua melhor tradução visual naquele que é o mais perfeito double bill do cinema de Burnett, e que o Play-Doc teve a generosidade de programar: My Brother’s Wedding e When it Rains.
Em My Brother’s Wedding, provavelmente o filme mais bem conseguido da sua filmografia, acompanhamos esse corre-corre que é a vida de Pierce Mundy. Todo o filme se desenrola num infatigável movimento de vai-e-vem representado pro-filmicamente nas correrias de Pierce na companhia do seu amigo, recentemente saído da prisão, Soldier pelas ruas declivadas de LA. Ele corre, salta, empurra o amigo e o amigo empurra-o a ele. Há uma liberdade vadia nos movimentos que significa uma coisa para os seus pais e a sociedade em geral: Pierce, com 30 anos, solteiro e a viver na cada dos pais, ainda não cresceu. Pelo contrário, o seu irmão está-lhe nos antípodas: um advogado bem sucedido que vai casar com uma mulher de famílias ricas.
Pierce é o pivô entre a classe baixa da comunidade negra onde vive e a classe alta representada pela família da sua futura cunhada. Ao mesmo tempo, ele adora o seu amigo delinquente. O final do filme leva esta “divisão” até às últimas consequências. Burnett produz uma tempestade perfeita na vida do protagonista, quando este, perante uma encruzilhada tão física e temporal quanto puramente moral, é obrigado a fazer uma escolha. A pressão social e racial converte-se assim numa muito cinética forma de stress. A montagem alternada e a last-minute rescue griffithianas ganham, assim, um novo sentido. Quase apetece dizer: implodem! Curioso que assim seja. Na conversa que tive com Burnett foi interessante constatar como The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação, 1915) não deixa de activar no meu entrevistado poderosas perplexidades. A raiz do estilo clássico de storytelling é um libelo racista que exalta a missão dos cavaleiros brancos do Ku Klux Klan ao mesmo tempo que procura caracterizar a Reconstrução da América como um período de degradante capitulação histórica. A capitulação à trapaceira e preguiçosa população negra.
When It Rains retoma algum desta errância de My Brother’s Wedding, pese embora aqui a história seja muito diferente. O líder de uma comunidade negra procura ajudar uma “sister” e a sua filha a pagarem a renda da casa em atraso. Ele vai iniciar uma campanha de angariação de fundos “porta a porta”. Burnett, como fez em filmes anteriores, acompanha-o na sua travessia, nas suas movimentações irregulares pelas ruas de LA. É um filme vadio, uma espécie de Umberto D. (Humberto D., 1952) em versão jazzística de rua, mas serve também de auto-retrato do que havia e haveria de continuar a ser a carreira de Burnett: de produtora em produtora, à procura de financiamento para um próximo projecto. Contudo, Burnett nunca está disponível para negociar a sua independência. Um dos maiores divulgadores da obra de Burnett, o crítico norte-americano Jonathan Rosenbaum, escreveu um dia: “Burnett’s resistance to hustling and branding (…) is in fact an important part of his greatness”. Citei a Burnett esta frase de Rosenbaum para ver se o despertava. Se não o despertei completamente – já disse que as noites espanholas conseguem ser mesmo muito longas? – pelo menos a mim despertou-me ele com o que me contou.
Da sua boca começa a sair, lenta e pausadamente, um rol de histórias acerca da frustração que é – que tem sido – a sua vida enquanto negociador ou angariador de apoios. De novo, a questão da raça aparece como incontornável. Uma produção em que esteve envolvido contava a história de um coro de crianças em Harlem e a forma como este atingiu níveis de excelência que fizeram notícia muito além das fronteiras do bairro. Os produtores queriam, contudo, que a história fosse contada de uma determinada maneira: no centro do drama estaria um rapaz com uma voz divina, que mostraria “o caminho” a todos os outros meninos do coro. Esse rapaz era branco, os outros eram negros. Burnett não cedeu um milímetro, acabando por abandonar o projecto. A sua história não era aquela. Melhor: “a história” não era aquela. As negociações exigiram tanto de si que a sua saúde cedeu. Conta-me que padeceu nesta altura de uma paralisia de parte do rosto devido a stress. Alguns tiques que tem na face – e a ligeira gaguez na voz – parecem querer dizer que se calhar a aparência jovem de Burnett é um prémio da Natureza – ou de Deus, consoante as crenças do leitor – à sua determinação e inegociável independência.
Burnett estava cansado, com sono. Mas no seu cinema – mal-grado a sua subtileza – não há sonos pacificados. To Sleep with Anger é um drama de 1990 que só conseguiu filmar porque Danny Glover aceitou entrar no filme como actor e produtor executivo. É um filme sobre um conflito entre o passado e o presente (vis-à-vis entre o Sul e o Norte) desenrolado, como é hábito em Burnett, no âmago de uma família afro-americana residente em LA. O convidado (in)desejado vindo do Sul é interpretado soberbamente por Danny Glover. O seu nome é Harry e o filme, a partir de certa altura, poderia ganhar um novo título: “The Troubles with Harry”. Corpo estranho, envolto por uma aura mística desconcertante que remete para os tempos do Sul esclavagista, Harry vai semeando lenta e insidiosamente a desordem na vida desta família. Até ao ponto em que ninguém mais poderá já dormir descansado com a sua própria consciência.
De sono turbulento tem estado Burnett. Ainda bem que não dormiste muito em Tui, caro Charles. O teu sono nos filmes tem “anger”, mas não tem “hate”. Contudo, mais tarde, ao jantar, contaste-me, bem mais desperto, como te inquieta o actual estado das coisas no teu país. Viste o discurso de Danny Glover no rally de Bernie Sanders? Não vi, não. Claro que não, mal tens tido tempo para dormir. Dormir com “anger” ou sem “anger”. Nem uma siestazinha! Mas, diz-me, vais votar Bernie? Sim, vou… Disseste-me nessa noite que acompanhar os media a propósito da campanha à nomeação presidencial se tornou numa fixação insalubre para ti. Falas de uma realidade escondida dos holofotes mediáticos. Populações negras erradicadas quando ninguém está a ver. “Eu sei que parece paranóico, mas…” E a ansiedade – o medo, apetece dizer – toma conta de ti. És incómodo ou estás incomodado e não te conformas? O medo toma conta de ti, dizia, mas também toma conta de mim que te ouvia a falar ao mesmo tempo que procurava por mais vestígios de paisagens no teu rosto e na tua voz. O jovem rosto de um septuagenário. Ainda está a tempo de encarar tudo isto naquele país onde as imagens brilham. É lá que os sonhos devem ser sonhados. Na sala escura do cinema, quero eu dizer. Voltemos para lá que já se faz tarde.
Este texto resulta fundamentalmente de uma combinação de duas fontes: a entrevista que fiz a Charles Burnett e os textos publicados no livro Charles Burnett, un cineasta incómodo, editado por María Míguez e Víctor Paz. Agradeço em especial ao Víctor Paz a oportunidade que me deu.