Para além da nota de suicídio que, a 5 de Novembro de 1981, afixou do lado de fora da porta do seu quarto («batam com força, como se tivessem de acordar um morto»), Jean Eustache não deixou muito à posteridade. Metricamente falando: duas longas ficcionais e outras três documentais, às quais se somam meia dúzia de curtas e de médias que – a fazer fé no que por aí se diz – não formariam mais do que uma filmografia frágil e descosida, que se dividiria entre o documentário rural [Le cochon (1970)] o retrato intimista [Número Zero/Odette Robert (1971)] e a reflexão sobre a linguagem cinematográfica [Une sale histoire (1977), Les photos d’Alix (1980)]. Suspeito até que, se não tivesse realizado La maman et la putain (A Mãe e a Puta, 1973), Eustache pouco mais seria, hoje, do que um nome inserido à pressa, e em nota de rodapé, na história do cinema francês.

Percebe-se: como Pialat e Garrel, Eustache nunca foi – nem nunca quis ser – um «cineasta profissional»; nunca filmou para «fazer carreira», para coleccionar palmas de ouro, leões de prata, ursos de bronze ou leopardos de porcelana. Eustache filmou quando arranjou película para fazê-lo (foi Godard quem lhe deu alguns metros dela, para que, em 1966, ele pudesse rodar Le père Noël a les yeux bleus), e quando acreditou ter qualquer coisa para salvar; quando acreditou poder resgatar do esquecimento os espaços e as figuras que lhe eram queridas [a vila da sua infância, em La rosière de Pessac (1979), a sua avó envelhecida, em Odette Robert…]. Neste sentido, é justo dizer – como Serge Daney o disse, numa notícia necrológica publicada no Libération de 16 de Novembro de 1981 – que Eustache foi «um etnologista da sua própria realidade», o autor de um cinema «impiedosamente pessoal» que (e agora sou eu quem o diz) se estava marimbando para a sua «coerência interna».
Posto isto, que fique claro: apesar da sua falta de «vocação profissional» (e até, talvez, por causa dela), a obra de Eustache é de uma coerência rara. Nela, tudo obedece a uma exigência de simplicidade (quanto à forma) e a um desejo de intimidade (quanto à matéria); nela, o cinema despe-se de tudo o que é supérfluo para surpreender a vida à flor da pele, e para se fazer próximo daqueles que o vêm habitar (amantes, amigos, familiares…).
Prova disso é, por exemplo, a segunda e última das longas de ficção que Eustache assinou: Mes petites amoureuses (1974), onde o cineasta faz desfilar as memórias da sua própria juventude, na França de princípios da década de 50. No artigo sobre o cinema de Eustache que escreveu para o Senses of cinema (fazendo dele um moralista puritano que tenho dificuldade em reconhecer), Jared Rapfogel dedica – se tanto – sete ou oito linhas ao filme. É um direito que lhe assiste, tal como a mim me assiste o de afirmar que é triste despachar assim um dos mais belos filmes que vi sobre a juventude (já sabíamos que era preciso salvar Eustache do esquecimento ao qual foi votado; ficamos agora a saber que é preciso salvá-lo, também, daqueles que querem recuperá-lo à pressa).
Mas, o que temos, aqui? A crónica do fim da infância de um rapaz de doze anos (Daniel/Martin Loeb) que vive com a sua avó numa aldeia no sul de França. Trata-se de uma criança como todas as outras, cujas experiências só se distinguem pelo facto (extraordinário) de serem as suas: acontecimentos vividos por dentro, sem distância. De maneira a encená-los, Eustache lançará mão de uma montagem elíptica, que vai justapondo fragmentos do quotidiano do rapaz: um pequeno almoço regado a leite com chocolate, uma ida ao circo com a avó, uma tarde passada com os amigos num bosque das redondezas, uma tentativa de assustar de morte uma rapariga com uma pistola de fulminantes…
Já sabíamos que era preciso salvar Eustache do esquecimento ao qual foi votado; ficamos agora a saber que é preciso salvá-lo, também, daqueles que querem recuperá-lo à pressa.
A normalidade desta infância é, de resto, reforçada pela paleta de cores de uma fotografia (dirigida por Nestor Almendros) que privilegia os tons neutros: os brancos, os castanhos, os cinzentos… Quanto à luz que banha o filme, essa, vai-se tornando cada vez mais crepuscular (ou é só impressão minha?) à medida que a narrativa avança – como quem nos diz que há qualquer coisa que se aproxima do seu termo.
Este pressentimento será confirmado no dia em que, sem que nada o fizesse prever, a mãe do rapaz (Ingrid Caven) vem arrancá-lo à despreocupação do seu quotidiano, obrigando-o a ir viver com ela no seu exíguo apartamento, situado na pequena cidade de Narbonne. Não será preciso esperar muito até que as intenções da mãe em relação a ele fiquem claras: tirá-lo da escola, e pô-lo a trabalhar como assistente na oficina de um mecânico local.
O que se segue é a lenta descrição de um crescimento precipitado (o do rapaz, claro está), que será marcado pela génese de dois desejos que comunicam entre si. A saber: o cinematográfico [com o rapaz a aproveitar os tempos livres para frequentar as salas de cinema da cidade, onde dará de caras com o erotismo do rosto da Ava Gardner de Pandora and the Flying Dutchman (Pandora, 1951)] e o sexual. Com efeito, se há coisa da qual Eustache aqui nos fala é da descoberta do feminino como um obscuro objecto de desejo. Disso e da educação sentimental de um rapaz que – literalmente às apalpadelas (e poucos filmes serão mais «tácteis» do que este) – vai aprendendo a lidar com ele.
Neste quadro, o que é notável é a forma como Eustache recusa a facilidade, mandando às urtigas o sentimentalismo de pacotilha e declinando tudo o que se assemelhe a um floreado, para obter uma representação tão genuína quanto possível da sua própria juventude. Daí que os movimentos de câmara se queiram sempre discretos, tal como discreta se quer também aquela narração em off na primeira pessoa, que só intervém a espaços para acrescentar sentido aos planos.
No entanto, ainda mais notável é o modo como Eustache investe a banalidade dos acontecimentos que filma de um valor verdadeiramente excepcional, pelo simples facto de lhes dedicar toda a sua atenção. O primeiro beijo de Daniel (aquele que ele prega a uma rapariga desconhecida) não é o primeiro beijo que, na história do cinema ou fora dela, um rapaz dá a uma rapariga. Mas, como a morte do Ivan Iliitch de Tolstói, aquele primeiro beijo está longe de ser um episódio anónimo, impessoal: ele é o primeiro beijo de um rapaz como todos os outros e como nenhum outro, que não voltará na sua vida a beijar uma rapariga pela primeira vez, e cujas experiências, sendo irrepetíveis, são por isso mesmo excepcionais. Como as de cada um de nós para cada um de nós.
«Neste ponto, está qualquer coisa de simples, de infinitamente simples, de tão extraordinariamente simples que o filósofo nunca conseguiu dizê-la»(1). Que ele se cale, então: o cinema de Eustache falará por ele.
(1) BERGSON, Henri, Oeuvres, Paris, PUF, 1959, La pensée et le mouvant, 119, p. 1347.