Eu tenho dois amores / Que em nada são iguais / Mas não tenho a certeza / De qual eu gosto mais.
O single de Marco Paulo de 1980 que não mais abandonou o espetro da música popular portuguesa (pimba ou não) e do imaginário de um certo Portugal romântico, latino e piroso faz, na sua roupagem lowbrow, uma cristalina síntese dos tormentos por que passa Jerry (Fredric March) em Merrily We Go to Hell (Quando a Mulher se Opõe, 1932), filme de Dorothy Garner, uma das raras mulheres a dizer “Action!” e “Cut!” na Hollywood clássica dos anos 30. De um lado, a loiríssima, “devilíssima” Claire (Adrianne Allen), que há uns anos deixou Jerry na sarjeta; do outro, a morena, bondosa e dulcíssima Joan, interpretada por Sylvia Sidney, a mais adorável e a mais bonita das actrizes de Hollywood dessas décadas (Marion Cotillard é a sua herdeira directa, se virem bem), de tal forma que sempre preferi não investigar muito sobre a sua vida para não lidar com a provável postura de “diva arrogante” na vida real. Dela escreveu Bénard da Costa, com a propriedade de sempre, que “nunca foi uma mulher obscura, de sótãos ou alçapões. Nela, até os sítios escuros eram claros, cor-de-rosa, cor de bebé-nestlé” [1].
Para nós, espectadores que observamos tudo confortavelmente do lado de cá da quarta parede, a situação não nos oferece dúvidas, o dilema não existe: claro que Jerry deve ficar com Joan, ponto final. Reparem como, aqui, aquele velho dito – “Isso é nos filmes, mas, na vida, as coisas não são assim tão fáceis!” – opera precisamente ao contrário. De facto, é no filme que as escolhas são extremamente difíceis de fazer para Jerry; pelo contrário, na “vida real”, i.e., na nossa vida de espectadores durante o tempo em que assistimos ao filme, é tudo muito fácil e imediato – Joan é a mulher que todos queremos, para Jerry e para nós.
“Durante o tempo em que assistimos ao filme”, escrevi eu acima, e não foi por acaso. É que se, no quotidiano de todos os dias (e não no momento em que assistimos ao filme), nos víssemos perante uma situação como aquela com que Jerry se confronta, decerto já não conseguiríamos dar a mesma resposta tão rapidamente (ficar com Joan e não com Claire). Um outro adágio faz-se agora ouvir: “Quando é com os outros, é fácil, mas quando é connosco…”. Mas porquê? Entre Joan e Claire, porquê a indecisão? Qual indecisão? É a pergunta que Sam The Kid, mesmo se nunca viu o filme (ele é cinéfilo, sobretudo no que toca aos americanos, por isso até pode ter visto), faz em “Hereditário”: “Enquanto a dor ecoa, habituado a que ela doa / Porquê amamos mais a quem nos mais magoa?”. Sim, desculpem a insistência: porquê? É também essa a pergunta, tenho a certeza, que Jerry faz a si próprio antes de cada contristado brandy que leva à boca: porquê que amo tanto aquele diabo da Claire? Porquê que digo à Joan que ela é swell mas nunca, como tantas vezes disse à Claire, que a amo? Porquê que não consigo desejar a Joan com a mesma abnegação, com a mesma loucura, ela que tão boa é para mim?
Ele não sabe a resposta. Nós também não sabemos: nem à pergunta dele, nem às nossas. Até conhecer Joan, Jerry conserva um omnipresente retrato de Claire em cima da secretária na qual tenta escrever sem sucesso uma peça de teatro (só o conseguirá fazer, já advinharam, na companhia de Joan…), qual espada de Dâmocles permanentemente pendendo sobre a sua cabeça. Acontece-nos fazer muitas vezes o que Jerry fará, sem maldade alguma, com Joan: usa-a para ultrapassar um trauma, para substituir um afecto por outro, para ter um rosto novo e esquecer essa devil’s face. É desta (tentativa de) fungibilidade emocional que trata o filme: o arriscado e titubeante gesto de substituir uma face por outra face, um fantasma do passado (Jerry chega a referir-se expressamente a Claire como um ghost…) por um ser de carne e osso no presente.
Sabemos todos, porém, que, nestas coisas do coração, tudo se passa como na arte: a reprodução, embora possa enganar num primeiro momento, nunca é tão boa como o original. … Não?! Mas como, se Joan é tão mais meiguinha e afectuosa com Jerry do que era Claire, essa Hydra venenosa que não se apaga, que não desaparece, que não morre? De novo a million dollar question: porquê que, frequentemente, são as pessoas mais difíceis, mais truculentas, por vezes até mesmo maldosas connosco, aquelas que mais nos prendem e não as que são genuinamente boas e estão sempre prontas para nos dar um ombro? Porquê que preferimos sempre os caminhos mais acidentados e, não raras vezes, mais dolorosos? Exceptuando o amor, não serão muitos os domínios em que isso acontece: ninguém prefere trabalhar mais e ganhar menos do que trabalhar menos e ganhar mais; ninguém prefere um prato que detesta desde a meninice a batatas fritas e ovos estrelados; ninguém prefere a companhia de alguém aborrecido ou desagradável a um amigo de quem se gosta; ninguém troca uma sogra simpática e respeitadora por uma metediça… Então, porquê? Porque o amor não se faz com uma máquina de calcular na mão, dirão alguns; mais uma vez, a resposta não é fácil. Ou, provavelmente, não existe. Certo, certo é que raramente esse processo de substituição funciona e, na esmagadora maioria das vezes, dá asneira e alguém sai muito mal da história. No filme de Garner, é a Joan, ao docinho da Joan, a quem sai a fava.
Em L’ombre des femmes (À Sombra das Mulheres, 2015), o último filme de Philippe Garrel, Pierre também tem dois amores, novamente um loiro, Manon, e outro moreno, Elisabeth. Mas o processo, aqui, é um pouco diferente: não é de uma substituição que se trata, mas de uma sobreposição, de uma coexistência de afectos e de corpos. O que Pierre procura em Elisabeth não é a superação de um trauma ou de uma frustração, mas algo que Manon já não lhe dá (desejo, de certo, mas também algo mais, ele não o sabe bem e eu também não). O problema, contudo, é que, neste caso, ambas, Manon e Elisabeth, são pessoas realmente bondosas para Pierre, mulheres ternas, sensíveis, carinhosas. De barriga duplamente cheia, Pierre desdenha e, ao contrário do ditado, não compra: não sorri uma única vez, não tem uma manifestação de carinho, não corresponde nunca à entrega daquelas mulheres (o bouquet tem o exacto significado expiatório que Manon, mulher inteligente, intui). Os versos de Sam The Kid acima citados não terminam ali, prosseguem assim: “Ah! Amar e amar, há ir e nunca mais voltar / Ao lar, doce lar / Até que a morte ou uma traição separe”. Por isso, e porque ”só se dá o real valor às coisas quando as perdemos” (hoje estou com a algibeira cheia destes ditos), é apenas no momento em que se depara com a traição de Manon que Pierre se agarra a ela. E Manon, sempre tão bondosa, tão generosa, além de confessar a relação paralela, termina-a imediatamente e entrega-se-lhe de novo, absolutamente… Tudo fácil, outra vez. Tudo, porém… insuficiente.
Em Merrily We Go to Hell, Jerry e Joan também se traem mutuamente, também se separam e voltam a juntar-se (na traição de Joan residindo a “oposição” de que fala o título português, embora um filme verdadeiramente feminista, como o de Garner é frequentemente apelidado, fosse o que atribuísse à mulher, e não ao homem, o dilema da escolha). No filme de Garner, há um pequeno pormenor chamado Hollywood e, por essa razão, um respectivo happy end para cumprir, embora, perdoem-nos o pessimismo, seja um final profundamente falso, pois, muito provavelmente, Jerry voltará, algum tempo depois, aos copos e a Claire – talvez Garner pressentisse o mesmo que eu e esse seja o motivo para a ironia amarga que se insinua no título do filme (eles vão merrily to… hell, não to heaven). E Joan? A Joan acontecerá o que Bénard da Costa previu: “quando a magoavam, ficava com os olhos mais húmidos – ainda mais húmidos – mas voltava a brincar com o fogo se o fogo queria brincar com ela” [2]. O fogo há-de voltar, há-de. Neste capítulo, o filme de Garrel é o perfeito oposto: aquele end é verdadeiro, Pierre e Manon ficarão de facto juntos. Só não é happy, é apenas o end em que dois seres se agarram ao que de mais próximo têm, aliás, à única coisa que têm. A vida seguirá, as perguntas permanecerão, as respostas sem chegar. Como cantaria o Marco Paulo: “Meu coração continua sem saber o que fazer”…
[1] João Bénard da Costa, Muito Lá de Casa, Assíro & Alvim, 2007, p. 231.
[2] Ibidem, p. 231.