Depois de aquecidas as hostes no dia 24 de Abril com a filmografia “de combate” de Jean-Gabriel Périot, o feriado da Liberdade, após os bonitos festejos até ao Largo do Carmo, teve um simbólico encontro com o IndieLisboa através da exibição de Cartas da Guerra, o filme de Ivo M. Ferreira estreado na última Berlinale e baseado nas cartas escritas durante a guerra colonial por António Lobo Antunes para a mulher. Calhou de me sentar ao lado de Manuel Mozos, que, no fim do filme, com os créditos ainda a correr, se exasperou (discretamente) com a luz incandescente dos telemóveis que alguém na fila da frente não conseguiu deixar de ligar… E, depois do admirável preto-e-branco que acabáramos de presenciar, tinha razões para tal irritação.
Jean-Gabriel Périot 2 (vária)
A secção Silvestre, este ano com o foco em Jean-Gabriel Périot (já entrevistado pelo À pala de Walsh), prosseguiu, depois do primeiro “tomo” (exibido no sábado, 23), em vésperas do feriado da Liberdade, nem por acaso com documentários, todos eles de curta ou média duração, que, recorrendo ao found footage e a imagens de arquivo, respiram uma dimensão política evidente, como que aquecendo a noite para os festejos do 25 de Abril. Dimensão, essa, ora mais “combativa” ou denunciante e em que a violência, física e psicológica, está sempre perversamente latente (L’Art Délicat de la Matraque, Eût-Elle Été Criminelle…, The Devil, Nijuman No Borei, 21.04.02); ora de pendor mais sociológico, se bem que ainda e sempre “político” – como não reconhecer o político, no que de transformador e criativo ele comporta, num filme como Le Jour a Vaincu La Nuit (“O dia conquistou a noite”), tocante (mas desprovido de artifícios) testemunho de reclusos, homens e mulheres, sobre sonhos aprisionados em quatro paredes de uma cela?
“Sonhos”, aqui, que tanto correspondem aos tradicionais desejos de evasão e felicidade (amar alguém, constituir uma família, etc., mas também aqueles que, na sua aparente excentricidade, são, afinal, absolutamente normais, como ser DJ), como, simplesmente, às narrativas e imagens que nos assaltam à noite durante o sono, com o que de belo, estranho ou misterioso sempre comportam, nessa “universalidade onírica” se manifestando o propósito de Périot em salvaguardar a irredutível dignidade que estas pessoas (rostos filmados sempre em grande plano) mantêm. Comum a todos os filmes é a tendência do realizador para “enganar” (trick) o espectador, começando por passar determinada ideia sobre de que é que trata o filme para, logo a seguir, num twist que pode ser narrativo ou simplesmente visual, desviar o filme do que ele parecia ser. É o que acontece em Dies Irae, onde, depois de uma quase infindável sobreposição de estradas, túneis ou caminhos de ferro, num exercício até aí aparentemente – politicamente – inofensivo, Périot finaliza o filme “entrando” por Auschwitz a dentro, o último plano no interior de um forno crematório. Todos os caminhos vão dar a… Auschwitz? Em tempos nos quais os fascismos voltam definitivamente a sair da casca e inclusivamente a ganhar eleições, a reformulação do adágio romano sugerida por Périot torna tudo mais preocupante.
Cartas da Guerra (2016), de Ivo M. Ferreira
Não é novidade para ninguém que é ainda escassa a filmografia portuguesa (de qualidade ou não, autoral ou não) produzida sobre o nosso passado colonial (os títulos mais importantes ainda continuarão a ser Um Adeus Português, Non, ou a Vã Glória de Mandar, Os Imortais, A Costa dos Murmúrios), sem dúvida por opção dos realizadores e por constrangimentos de produção, mas também porque, como vem sendo sublinhado por muitos historiadores, o próprio país tem ainda dificuldade em olhar-se ao espelho e revisitar, sem complexos ou receios de represálias, esse período da nossa história colectiva, disso sendo sintomático o aviso que o realizador deixou, antes da exibição do filme, aos – palavras do próprio – “camaradas de guerra” presentes na sala: “Perdoem-me. Isto é apenas a minha visão”.
Entretanto, Miguel Gomes surgiu, fulgurante, brilhante, com Tabu (2012); mais recentemente, pelo contrário, em Posto-Avançado do Progresso (2016), Hugo Vieira da Silva, pese embora as boas intenções, não conseguiu convencer na adaptação da obra de Joseph Conrad ao contexto colonial português do século XIX, desde logo pelo desaproveitamento do material visual e fílmico à sua disposição, nunca tirando partido do capital natural (e cinematográfico, et pour cause) da selva africana. Ora, isso é algo que manifestamente não acontece no filme de Ivo M. Ferreira, visualmente quase irrepreensível, seja no apuramento altamente contrastante do preto-e-branco (admirável trabalho de fotografia de João Ribeiro), na iluminação ou naqueles poéticos planos gerais e de conjunto da paisagem angolana. Há momentos realmente brilhantes, como as cenas filmadas no navio saído para Angola (aquele God’s eye view shot sobre o médico a dormitar, os concertos para os recrutas), nas quais o realizador português denota uma noção muito precisa da (elegante) mise en scène que pretende.
Sendo um filme “sobre” a guerra colonial, teria sempre que ser, necessariamente, um filme “político”, embora seja no cruzamento da “História” com a história individual e emocional de um médico (Lobo Antunes, então ainda não publicado) destacado para Angola que o filme (e a vida) se faz. A este respeito, um dos principais atributos do filme – a matéria textual das cartas de Lobo Antunes – acaba por ser, paradoxalmente, um dos pontos fracos mais evidentes, não pelo seu conteúdo, naturalmente (embora as enumeração prolíficas, sem bem que literariamente valiosas, sejam por vezes fastidiosas, o que poderia ter sido adaptado para o filme), mas pelo recurso abusivo à leitura em off do texto em detrimento do foco na acção propriamente dita, com a agravante de, por ricochete, a presença de Margarida Vila-Nova – que não a sua voz, magnífica na leitura, nada fácil, das cartas apaixonadas e angustiadas em doses iguais – se tornar decorativa e despicienda, culpa de quem a dirige e não da própria (nem mesmo como “fantasma”, como fantasia ou perturbação onírica funciona). É esse carácter exacerbadamente epistolar que, nos piores momentos (i.e., enquanto a leitura do texto dura e dura sem alternar com a acção em Angola), retira gravidade e esplendor ao filme, ao que não ajuda a câmara sempre em movimento, o que confere um tom demasiado ornamental e secundário à imagem por oposição ao omnipresente som. Nada disto, porém, impede Cartas da Guerra de ser um digno e meritório objecto cinematográfico, orgulhosamente autoral, e um importante contributo para a preservação da nossa memória colectiva.