Tal como no dia anterior, o IndieLisboa congregou, no mesmo dia e no mesmo lugar (dia 28, Cinema Ideal), talvez inconscientemente, um espaço-ambiente comum, a saber, um barco onde pobres (no caso de Flotel Europa) e ricos (Chevalier) convivem em diferentes processos de socialização e introspecção. Ambos integrados na secção Competição Internacional, e pese embora os seus pontos fortes, os dois filmes não nos parecem, porém, sérios candidatos à vitória.
Flotel Europa (2015), de Vladimir Tomic
O documentário de Vladimir Tomic é, por todos os motivos e mais alguns, um filme muitíssimo actual, a começar no título (e na ideia de “Europa”, solidária e unida, ou não, que lhe está subjacente), passando pelo tema (os refugiados) e acabando, inevitavelmente, na noção de que a História, de facto, não se cansa de repetir naquilo que de pior nos traz à memória. “Flotel Europa” foi o nome dado ao navio-prédio atracado ao cais de Copenhaga que albergou, a partir de 1992, uma vaga de refugiados chegada à Dinamarca na sequência da guerra da Bósnia-Herzegovina, aí sendo mantidos até que os seus pedidos de asilo fossem regularizados. É um lugar absolutamente insólito, inesperado, difícil de acreditar ontem como hoje – um “não-lugar”, se quisermos –, mas que, olhando para as actuais condições de vida dos sírios nos campos de refugiados, se parece com um autêntico hotel de luxo (passe o exagero). Tomic, então um miúdo de 12 anos, é um desses desterrados (literalmente: não vive com os pés em terra…) que, durante dois anos, viveu, com a mãe e o irmão, nesse peculiar albergue onde, num ápice, se formou toda uma comunidade (não sem os seus nacionalismos e os seus conflitos…) que foi tentando manter as rotinas próprias de uma “vida normal” como a dos dinamarqueses que viviam apenas do outro lado do cais.
Tomic monta as imagens de arquivo captadas por alguns refugiados (então mais velhos do que ele) que, a certa altura, compraram material em segunda mão e cassetes VHS e filmaram, de câmara na mão, o dia-a-dia destas pessoas nos momentos mais corriqueiros (fazer o jantar, ver televisão, a frequentar aulas de ginástica ou de inglês, guitarradas pela noite fora) ou graves (a morte do tio do próprio Tomic, o suicídio de alguns dos “punks” mais velhos do grupo). É neste registo home video, e no que de “caseiro”, familiar e acolhedor ele encerra, que Tomic, narrando em off, potencia o capital poético dessas imagens (desde logo no positivo aproveitamento que faz da sua fraca qualidade, do granulado aos cortes), mesclando a História da Europa (e a dos Balcãs, em particular) com as pequenas histórias individuais de cada uma daquelas pessoas, de que é exemplo a assolapada paixão do próprio realizador por uma miúda da sua idade, Melissa (de quem, curiosamente, nunca vemos o rosto). Tomic, porém, nunca puxa o filme para o miserabilismo, antes revelando uma extraordinária determinação em mostrar a alegria que, malgré tout, persistia naquele lugar impossível, sacando gags que, mais do que nos arrancarem uma gargalhada (a “reportagem” que a sua mãe faz para enviar à família na Bósnia é um momento de antologia), nos enternecem pela humanidade e dignidade que crismam naquelas pessoas, gente, afinal, com os mesmíssimos medos e desejos que todos nós. Num filme que é também um nostálgico regresso aos anos 90 (os cabelos, as roupas, a música…), a pergunta que fica é essa: que Europa temos e que Europa queremos? Temos todos os pés assentes na terra quanto a isso ou continuaremos a… flutuar?
Chevalier (2015), de Athina Rachel Tsangari
Depois do não menos insólito Attenberg (2010), a realizadora grega volta à carga com este “diário de bordo” (e estes homens andam mesmo com um bloquinho de notas, embora com outro propósito…) de uma viagem de iate de um conjunto de “homens à beira de um ataque de nervos”. Homens ricos, bonitos e em forma, com as maneiras e as roupas adequadas à sua elevada condição social e que passariam simplesmente por isso mesmo se com eles nos cruzássemos na rua (se bem que não pareça haver, aqui, qualquer comentário “classista” por parte de Tsangari, cuja paródia se estende igualmente ao pessoal do staff do iate). O que a realizadora faz é, justamente, desmontar essas ideias-feitas (e a grande Ideia agregadora, claro, a noção de “masculinidade”), sem, contudo, forçar fantasiosamente nada (seria muito fácil “torná-los” logo homossexuais, por exemplo), antes colocando estes “machos” numa dinâmica que nenhum homem sincero poderá negar existir desde a meninice, a saber, o permanente espírito de competição e rivalidade entre homens, que aqui desemboca no jogo do “Chevalier”, cujo objectivo é ser “O melhor de todos em geral” (assim mesmo).
Boys will be boys, então: desde o toque de telemóvel à relação com as respectivas mulheres, a capacidade física ou a resistência ao frio e ao vício do tabaco, o medo da calvície ou os dotes culinários, tudo são “situações de jogo” em que cada um destes homens vai anotando o score que os outros merecem para, no final, sair do ranking o grande vencedor (gag fenomenal, esse, o do “pacto de sangue”). O argumento é inteligente e fresco, com bastantes momentos de humor mais do que conseguidos, mas o certo é que não aguenta os 99 minutos do filme, repetindo as mesmas fórmulas e tornando-se previsível ao fim de algum tempo, o tom insólito a ser forçado até ao limite só “porque sim” (mesmo beneficiando do formidável trabalho dos actores). Durante grande parte do filme, pela tensão que se vai acumulando, fica-se com a sensação de que tudo aquilo poderá “estourar” num corrupio de violência e sangue, mas Tsangaria prefere manter-se fiel ao registo de contenção de seis cavalheiros em alto mar, o que, sinceramente, é pena.