Depois ter impressionado Berlim com Balada de um Batráquio (2016), que tem passado amiúde nesta edição do IndieLisboa, Leonor Teles impressionou-me a mim na cabine de DJ da Casa Independente, revelando uma bagagem discográfica muito interessante. A acompanhá-la, esteve, na pista, o inconfundível João Botelho, sempre em altas rotações e a mostrar à juventude como se faz. Mas e os filmes? Bom, isso foi um pouco antes: de dia, sim, mas também no escuro…
La Californie (2015), de Charles Redon
Para quem estava no Cinema Ideal (Boca do Inferno) e assistiu ao Q&A com Charles Redon (incrivelmente aparentado com Zlatan Ibrahimović) depois do filme, não pôde deixar de sentir um certo embaraço (essa coisa da “vergonha alheia”) em ter à sua frente o titânico (e tirânico) voyeur que acabáramos de ver filmando todos os passos e mais alguns da namorada (dançando, chorando, exasperando-se, tomando banho nua, fazendo amor, traindo-o até) e inclusivamente filmando-se a si próprio, ora em momentos puramente egocêntricos (de camera stick apontada a si), ora dando azo a fantasias sadomasoquistas (Redon chega a filmar uma sessão de chicote em que participa). Ironicamente, nunca vemos, porém, um terceiro a filmar o realizador, o que diz muito da sua personalidade emocional e artística. Iconoclasta, megalómano, stalker, fetichista – assim é Charles Redon (há algo de Orson Welles em si, até na sua fisicalidade…), que constrói um docudrama apaixonante e apaixonado (embora dos créditos do filme conste a menção de que tudo é verídico e que apenas a sequência temporal das imagens foi trabalhada), obsessivo e obcecado, sobre Mathilde Froustey, sua namorada e bailarina então em ascensão, seguindo-a e espiando-a doentiamente, sem freios ou falsas consciências, até ao momento em que Mathilde se começa a sentir verdadeiramente incomodada com a presença da câmara e com a atitude indolente do realizador (“Go get a job!”, ouve-se várias vezes).
O resultado deste big brother a dois é um filme que, na sua sickness, não deixa de ser um interessantíssimo – e, mesmo, comovente (como quando Mathilde lhe diz que ele já não conseguirá filmar mais imagens à altura do que era a sua relação no início…) – documentário sobre os altos e baixos de uma relação de amor (não tão peculiar assim, a diferença está mesmo apenas na presença da câmara), mas, também, sobre os tempos em que vivemos, onde a noção de privacidade é trespassada por iphones, clouds, “redes sociais” e afins – aliás, ainda fará sentido falar em “privacidade” sem darmos uma gargalhada a seguir? Não sei, mas isso não parece preocupar muito Mathilde Froustey, com quem Charles Redon se casa no final do filme.
Un monstruo de mil cabezas (2015), de Rodrigo Plá
A certa altura, num gag brilhante, o filho de Sonia diz a alguém que a música que aprecia é punk, dos Clash aos Pistols, ao que o seu interlocutor acrescenta os Ramones. Este trabalho de Rodrigo Plá é isso mesmo, um “filme punk”, no sentido de desobediência às normas instituídas, no caso, o perverso funcionamento da maquinaria das empresas seguradoras de saúde (Obamacare, anyone?). O filho também dirá a um polícia (a “Autoridade”, justamente), já no final, que se recusa a sair, numa frase que ecoa as linhas da guitarra de Johnny Ramone: “Só se me tirar daqui à força”. Ora, é o recurso à força, a realização da “justiça pelas próprias mãos”, que leva Sonia, esposa de um doente com cancro, num acto de desespero, a entrar pela noite a dentro numa série de casas da elite económica mexicana de arma em riste e com o único intento de conseguir as assinaturas necessárias à cobertura dos tratamentos que a empresa seguradora se recusa, ardilosamente, a cobrir.
As “mil cabeças” são, aqui, esses muitos representantes (accionistas, administradores, advogados, etc.) do “monstro” (a empresa seguradora, se bem que Plá, não deixando de abordar a questão classista num país tão desigual como o México, não imprima, e bem, um tom maniqueísta ao filme) por que Sonia vai passando na sua demanda de conseguir reunir a papelada necessária. O dispositivo montado assenta na conjugação da acção no presente com o julgamento em voice over de Sonia em flash-forward (só som, sem imagens), culminando num declarado open ending, a saber, o início da leitura de sentença de Sonia. E isso, obviamente, não é por acaso: é sinal, em mais uma atitude “punk”, de que o mais importante já foi contado (o desespero que leva alguém a assumir condutas que não se coadunam com a sua personalidade mas que são o último recurso perante a ganância e a usura) e de que, de ali em diante, o “resto”, aquilo que a sociedade instituirá como boa norma aos olhos de todos, não passará de um processo judicial com o seus trâmites e formalidades e onde a sentença não será surpresa para ninguém. A Justiça é um lugar estranho.