Sentei-me há dez minutos em frente ao teclado e ao monitor, estando desde aí a idealizar a maneira mais adequada para escrever algo sobre um dos filmes do coração, Dans la ville de Sylvia (2007), do catalão José Luis Guerín. Através de madura reflexão, chegou-se à conclusão de que um artigo sobre esta maravilha deve conter o menor número de caracteres possível, devendo até estar consagrado em Lei a punição de quem cometer a safadeza de fabricar três mil caracteres sobre o filme. A justificação objectiva e bastante premente é que um filme que vive quase exclusivamente das duas ferramentas básicas da linguagem cinematográfica deve dar primazia a elas mesmas. A justificação subjectiva é que estou com bastante preguiça.
Ele (Xavier Laffite) sentado numa esplanada de uma escola de arte dramática de Strasbourg. Parece olhar com atenção para algo. É um dos prazeres de se estar numa esplanada, o olhar para alguma coisa. É pena este “ensaio” Kevin B. Lee wannabe não estar a ser construído também numa.
Esse obscuro objecto do olhar. Consultar fotograma anterior, área à direita de Ele.
O interesse parece aumentar. Guerín, sem anunciar à martelada as suas intenções, desvia ligeiramente o nosso olhar para o reflexo na janela. O Spielberg e o De Palma são os únicos tipos do cinema norte-americano mainstream ainda a moldarem pequenas pérolas só com reflexos.
Vertigo (A Mulher Que Viveu Duas Vezes, 1958), La Jetée (1962), Zerkalo (O Espelho, 1975), é até onde a nossa memória chega.
Guerín faz o seu personagem rodar 180º. O mistério é bonito, mas ter uma cara que emoldure o nosso desejo ainda é melhor. Mudança de perspectiva, e fecho de plano. Há que se ajeitar bem para vermos o que nos espera.
O que o cinema do Argento nos ensinou é para olhar com todos os sentidos em sintonia, inclusive aqueles inexistentes.
Há quem, imerso no seu mundo de faces e de ritmos sonoros, se esqueça que tem uma das dádivas da História Humana bem à sua frente.
Ah, aquele brevíssimo momento de troca de olhares. Tal era o nosso embevecimento, que também o nosso se desviou. Não a quero incomodar, amor!
O leve constrangimento é rapidamente ultrapassado. Nova investida óptica. O mesmo alvo? A cerveja é que continua no sítio. Podem, nestes novos cinemas 7D, dar a possibilidade do espectador entrar na magia da tela.
Estamos a sonhar o que um cineasta norte-americano cujo primeiro nome é Brian provavelmente faria. Das duas uma: ou colocaria as duas jovens ambas focadas com a sua costumeira dupla lente, ou faria um muito ligeiríssimo movimento de câmara com uma ainda mais lenta mudança de foco. Guerín, pelo contrário, coloca o plano como repentino contra-campo. Menos “cinematográfico”, mais inesperado. Até porque o José nem devia ter câmara para isso. Os reflexos de Elas amontoam-se.
Grande plano e olhar (preencher o que se quiser). Uma simples alteração de escala de planos como sinal de crescente comprometimento. Cerveja sumiu.
Picasso não desdenharia.
Este último fotograma refere-se a um dos últimos planos de uma longa sequência onde Guerín coloca em prática a sua “aventura do olhar”, como ele se referiu a Dans la ville de Sylvia. Poderia também acrescentar uma “aventura do ouvir”, tal é o cuidado no tratamento sonoro, simultaneamente low key e cristalino, langoroso e detalhado. Raríssimo, nos dias de hoje, acontecer esta benesse de se ouvir o mundo no cinema. Se as duas aventuras emergem e se harmoniam, criando essa quimera do puro cinema hithcockiano, o grande artifício de Dans la ville de Sylvia consiste no facto de ser uma obra que poderá ser visionada (após as primeiras sete vezes) desprovida das suas propriedades sonoras ou visuais. O regalo emocional, por essa altura, já estará devidamente cimentado para nos preocuparmos com tais questões. A abarrotar de memórias pessoais ou cinematográficas
Dans la ville de Sylvia é um filme que nos mostra essa possibilidade diária de fazer cinema sem câmara e do prazer que daí se poderá retirar. Basta ver e ouvir. O que também nos providencia é a conclusão de que na Catalunha não há apenas cretinos a realizarem filmes.