Com as estreias de Kaze tachinu (As Asas do Vento, 2013) e Kaguyahime no monogatari (O Conto da Princesa Kaguya, 2013), de Hayao Miyazaki e Isao Takahata respectivamente, veio a notícia do hiato na produção dos afamados estúdios de animação Ghibli, que mais soou a despedida definitiva, visto que tanto um como o outro aproveitaram para anunciar a pré-reforma. Omoide no Mânî (Memórias de Marnie, 2014), a obra final-final dos Ghibli, assume, assim, um carácter quase póstumo. Realizada por um nome menos importante – Hiromasa Yonebayashi -, será (ou foi) vista como uma adenda pouco mais do que curiosa ao catálogo dos estúdios.
Essa percepção não é inteiramente justa, mas falta a Omoide no Mânî a originalidade do traço de Kaguyahime no monogatari e o escopo épico de Kaze tachinu. À superfície, é a historieta de uma adolescente orfã e solitária oriunda de uma cidade grande que vai passar uma temporada ao campo e (aviso: vou revelar o desfecho do filme imediatamente a seguir a fechar este parêntesis) (re)encontra a avó na forma de uma rapariga da sua idade, com quem vai criar uma amizade necessariamente fantástica… Bem vistas as coisas, a superfície já é suficientemente singular para tirar a empreitada da irrelevância.
O mais interessante (e/ou perturbante) de Omoide no Mânî borbulha, porém, sempre por baixo das aparências delicodoces.
Adaptado de um romance de literatura juvenil inglesa – When Marnie Was There de Joan G. Robinson (ao que leio, bastante caro a Miyazaki)-, o filme de Yonebayashi está mais próximo desse imaginário do que qualquer versão conhecida da cultura japonesa. Repare-se como se delicia a desenhar o retrato de uma Inglaterra costeira, verde, fresca e idealizada, com mansões abandonadas no meio de pântanos oníricos, velhinhas em cima de escarpas a pintar a orla marítima, amas severas, pescadores silenciosos, celeiros ominosos e uma meteorologia de chumbo e tempestades, embora a acção decorra no Japão. Ou como a imagética roça desavergonhadamente o gótico, ghost story sem fantasmas, prisioneiros, afinal, da mente perturbada da protagonista. De resto, a ideia de estrangeiro, também no sentido de estranho (ou de estranho no sentido de estrangeiro), é essencial ao filme (os olhos azuis de Anna são uma marca da sua diferença).
O mais interessante (e/ou perturbante) de Omoide no Mânî borbulha, porém, sempre por baixo das aparências delicodoces – apesar de tudo, o enredo desenlaça-se num regresso ao realismo, à sanidade, à normalidade, adequado ao suposto público-alvo (a animação dificilmente se dissocia da infância, malgrado as inúmeras excepções), se bem que tenha uns toques romanescos quase camilianos, fios de vidas emaranhados em acidentes, zangas, mal-entendidos nunca resolvidos e demais tristezas. Para lá dos indícios de terror psicológico sofridos por Marnie, personagem que não existe (ou já não existe), sevícias impronunciáveis e irrepresentáveis (e, portanto, ainda mais terríveis), a possível (provável?) homossexualidade de Anna e a natureza amorosa da sua relação com Marnie (desconte-se o incesto paradoxal, à altura ignorado) paira sobre grande parte da narrativa, sendo só “desmontado” no final.
A princípio, pensei que fosse só eu, talvez os meus olhos ocidentais estivessem (ou quisessem) ver de mais na crescente obsessão de Anna por Marnie, no ataque de ciumeira quando ela dança com um rapaz, na maneira como põe o gabardina à volta dos seus frágeis e tremelicantes ombros, no que seria apenas uma “inocente” amizade (se a amizade é inocente, o amor é culpado porquê? de quê?). E na representação andrógina da personagem, maria-rapaz avessa aos códigos do seu género (a forma como o vestido tradicional nas festividades ao início lhe causa repulsa). No entanto, não estou sozinho. Uma simples busca por “when marnie was there sexuality” fez-me chegar críticas em jornais prestigiados norte-americanos e este interessantíssimo post num blog desconhecido que confirmavam e aprofundavam essa ideia.
Alguns desses textos condenam o medo do realizador em tornar explícito o que deixou subentendido. Até pode ser essa razão para Hiromasa Yonebayashi não ter deixado claro o seu propósito. Até pode nem ser esse o seu propósito. Pouco importa. O filme ganha com essa(s) dúvida(s). De cada vez que se pensa em Omoide no Mânî, este adensa-se no seu mistério, deixando o espectador na incerteza se este “banal” conto de fadas esconde outros buracos negros, poço sem fundo de inconfidências e temores.