O conceito de cinema independente tem as costas largas no IndieLisboa. A partir da revisitação de um filme de Paul Verhoeven na televisão e de uma conversa que tive com o director do festival Nuno Sena, encontrei o tema certo para esta edição da Civic TV. O tema parte de uma escolha que os programadores do IndieLisboa fizeram e que está longe de ser auto-explicativa. Paul Verhoeven é, com o quase desconhecido actor e realizador francês Vincent Macaigne, o grande homenageado do IndieLisboa 2016. Ele aparece na secção Herói Independente e, logo aí, parece acontecer algo de significativo. Um cineasta que passa quase todas as semanas na televisão portuguesa, creditado em filmes de acção e sexo que atingiram picos de popularidade nos anos 90, aparece como um herói e como um independente. A dimensão heróica do cinema de Verhoeven é relativamente consensual há já bastante tempo. Na realidade, não se pode dizer que este cineasta tenha sido sempre fustigado pela crítica ou repudiado pela globalidade dos cinéfilos. Talvez a rejeição mais violenta tenha acontecido com o seu maior flop comercial: o hoje tornado clássico de culto, nomeadamente pela alta cultura cinéfila, Showgirls (1995). Mas antes de partir para os Estados Unidos, Verhoeven já era um nome a ter em conta no panorama do cinema de autor europeu.
Os filmes holandeses de Verhoeven eram selvagens retratos da natureza humana. Eram truculentos, politicamente incorrectos e gostavam de chocar. Uma espécie de Fassbinder meets Pasolini operando, como um terrorista iconoclasta, em pleno Benelux. A Europa era demasiado pequena para ele. Verhoeven sempre pensou grande, isto é, os seus filmes apontam sempre para a produção de um imparável show cinematográfico, feito de velocidade, loucura, sexo, guerra… Uma voracidade e insaciabilidade que farão sempre parte do “toque” do realizador holandês. Na realidade, em Verhoeven, não se toca, apalpa-se; não se beija, trinca-se; não se ama, mas, antes, come-se. Assim, filmes como Turks fruit (Delícias Turcas, 1973), Spetters (Viver Sem Amanhã, 1980), De vierde man (O Quarto Homem, 1983) ou mesmo a saga da Segunda Guerra Mundial Soldaat van Oranje (O Soldado da Rainha, 1977) são óptimos exemplares do bestiário verhoeveniano. Tudo o que choca, fura paredes (porque os espaços do íntimo cedem sempre a uma vontade pela exibição all over the place) e perturba estados de alma cabe muito bem aqui.
Na América atinge o cume do mainstream com a sua história do Messias protegido por uma carcaça metálica à prova de bala. Para Verhoeven, RoboCop (Robocop – O polícia do futuro, 1987) actualizava na desgovernada – pelo crime e corrupção – cidade de Detroit a história de Jesus Cristo, morto e ressuscitado para regular – pela acção não das balas, mas da moral – a sociedade e a economia humanas. O cinema de Verhoeven segue na sua escalada rumo à imortalidade pop. Depois de encontrar Jesus numa distopia ultra-violenta sobre uma guerra civil entre homens-máquina que se debatem com questões da alma como questões de software – e se debatem com as questões do corpo como questões de hardware -, Verhoeven assina uma das primeiras – e mais geniais – leituras da hoje, de novo, muito falada realidade virtual e entrega-se de corpo e alma – pronto, sempre mais corpo do que alma – a uma recuperação humidíssima da atmosfera noir naquele que é um dos thrillers mais eróticos na história do cinema. Aqui o leitor vai dizer que eu nem preciso de dizer os títulos, mas eu digo à mesma: respectivamente, Total Recall (Desafio Total, 1990) e Basic Instinct (Instinto Fatal, 1992). Quem não os viu? Até apetece inverter a questão: quem conseguiu não ser visto por eles? Filmes que passam nos vários canais de televisão numa base tão regular que, às vezes, nos esquecemos de assistir a eles com olhos de ver. É aí que a proposta do IndieLisboa começa a fazer sentido.
Ai da crítica que queira fazer de Verhoeven o triunfo de um qualquer regime de “bom gosto” muito “europeizado”. O cinema de Verhoeven tem corpo e este corpo fode, fede, caga, transpira e vomita. Espectacularmente.
Falei com um dos directores do IndieLisboa, Nuno Sena, para perceber melhor esta escolha que pode ser tanto de risco – risco de descaracterização completa de um certo rumo programático – quanto pode constituir a provocação que faltava para expandir o conceito norteador do festival: o de “cinema independente”. No debate que o À pala de Walsh organizou no âmbito da secção LisbonTalks (dia 26, terça-feira, às 17h30 na sala 2 do Cinema São Jorge), encontrámos um oxímoro que deixa tudo em aberto: Verhoeven é um “independente megalómano”. Esta é uma interpretação nossa da escolha dos programadores do IndieLisboa. Ei-lo, portanto, caracterizado deste modo: Verhoeven, um espírito rebelde e insubmisso que sempre pensou grande (think big). Com Nuno Sena procurei confirmar esta impressão. “A ideia de ter sido capaz de resistir dentro do sistema de produção e de integrar nos filmes feitos dentro desse sistema um imaginário, um universo, uma determinada mundivisão parece-nos que faz a independência de Verhoeven”. Apesar disso ou por causa disso, remata: “Para nós, a palavra independente tem as costas largas. Se fosse, de facto, apenas uma coisa, tínhamos na altura optado por outra designação para o festival. A ideia era ter um adjectivo para o festival que não nos fechasse numa determinada linha mais restrita de programação e isso levou-nos para a palavra independente, que nunca foi entendida aqui como uma independência típica do sistema de produção americano, já que na América a independência é uma coisa e na Europa é outra”.
Nuno Sena recorda que já antes o IndieLisboa esticara o conceito de cinema independente. Johnnie To estava longe de ser um cineasta marginal, a trabalhar fora do sistema de produção de Hong Kong. Bem pelo contrário, na realidade. O próprio Herzog, outro Herói Independente no passado, sempre alternou a sua filmografia entre obras realizadas dentro de um regime de produção que se poderá denominar de “independente” e filmes feitos no coração da grande indústria. Mesmo assim, há na escolha Verhoeven uma intenção de ir mais longe. To era um cineasta praticamente desconhecido do público português e o cineasta alemão, apesar de tudo, está longe da popularidade que atingiu Verhoeven nos anos 90.
O Herói Independente do IndieLisboa 2016 realizou em 1997 o filme bélico futurista Starship Troopers (Soldados do Universo, 1997), uma produção estimada em 100 milhões de dólares. O fracasso comercial do filme foi retumbante, mas a liberdade que Verhoeven teve para o realizar acabou por o fazer falar mais alto com o passar do tempo enquanto “produto de autor”. Reabilitação crítica ainda mais profunda foi feita a essa espécie de All About Eve soap chamado Showgirls. Tenha-se como exemplo o crítico do Público Vasco Câmara, que hoje apelida Showgirls de obra-prima quando, por altura da sua estreia em sala, o despachou com uma bola preta. Não há nada de novo aqui. Conhecemos bem a falta histórica dos Cahiers du cinéma em relação a John Ford – e, acrescento eu, em relação a Zurlini. Também é uma história clássica as críticas de sinais opostos que, em pouco tempo, Roger Ebert conseguiu produzir sobre aquele filme que, em Cannes, lhe pareceu ser mais desinteressante que uma colonoscopia. Falo de The Brown Bunny (2003) de Vincent Gallo. De qualquer modo, é significativo este caso, porque precisamente – não é isso que o IndieLisboa 2016, afinal, propõe? – consubstancia esse acto não de olhar outra vez, mas de ver finalmente o que deixámos passar ao lado como “coisa insignificante”. Não partilho desse entusiasmo (re)descoberto por Showgirls, mas reconheço hoje – mais do que quando o vi pela primeira vez – que ele oferece um lugar privilegiado a partir do qual podemos apreciar alguns dos principais atributos de Verhoeven.
Showgirls é descompensado e histriónico, mas – ou por causa disso, na realidade – é compreensível que seja visto como uma boa súmula do cinema de Verhoeven. Se podemos acreditar que se trata de um retrato implacável das relações de poder no mundo do showbiz – dos espectáculos de strip-tease em Las Vegas até ao star-system que ainda reina na Babilónia Hollywood -, também sabemos que não é nada disso. Não há nada de subtil ou “continental” nos modos de Verhoeven. Se “elas” são showgirls, ele, atrás da câmara, é um showman. O filme sobre as relações de poder – ó meus filhos, não se iludam – é um faustosíssimo concurso de mamas – tal como a sua fase holandesa é, como observava há dias o colega walshiano Carlos Natálio, uma espécie de muito masoquista concurso de pilas. Ai da crítica que queira fazer de Verhoeven o triunfo de um qualquer regime de “bom gosto” muito “europeizado”. Não queiram tomar chá e bolinhos com ele. Não imponham os vossos bons modos a quem não os tem, não os quer ter e tem raiva de quem os tem. O cinema de Verhoeven tem corpo e este corpo fode, fede, caga, transpira e vomita. Espectacularmente.
Aproveitei esta proposta do IndieLisboa, sobre a qual tomei conhecimento há uns tempos, para antecipar o exercício e lançar um novo olhar a alguns destes filmes. Já falei sobre Showgirls, filme falhado que deveio, sem dúvida, mais interessante do que parecia ser quando estreou. Falta referir outro Verhoeven que sempre me deixou algo céptico e, como Showgirls, tem sido objecto de exultantes e exaltantes reavaliações. Falo de Starship Troopers, filme que apanhei – ou que me apanhou – há pouco tempo, enquanto passava mais uma vez na televisão portuguesa (desta feita, no canal Hollywood).
Revi o filme e uma conclusão logo me assaltou: é curto o argumento mais corrente que surgiu em resposta às críticas de fascismo, feitas à época da estreia do filme. Parece-me absolutamente óbvio – diria quase que “demasiado óbvio” – o distanciamento crítico de Verhoeven em relação ao retrato que faz da cultura das armas e da guerra que forma e deforma a sociedade do espectáculo americana ou americanizada. A ida para a tropa aparece como um ritual de passagem (para a “cidadania”, diz-nos o filme) mais excitante e feliz que qualquer “prom night”. É a promessa de felicidade que faz rasgar sorrisos colgate em rostos angulosos, demasiadamente bem talhados para nos convencerem para lá da superfície (há quem descreva o filme como sendo um “Beverly Hills no espaço”). O corpo aqui é instrumental para a sátira – talvez, por via de um interesse pela “porcaria asséptica” da linguagem televisiva, Starship Troopers case com Showgirls. O cinema de Verhoeven torna-se jocoso, por vezes irresistivelmente jocoso, mas perde densidade corpórea/dramática, o negrume e desconforto que o costumam atravessar. A larva gigante com rosto de vagina é a apoteose deste gozo interstelar, mas a certa altura o filme começa a repetir-se sobre si mesmo, na sua mensagem implacavelmente dirigida a nós, espectadores. O poder satírico é esgotado algures a meio, ficando o filme com pouco para oferecer daí em diante.
Ainda assim, o seu olhar crítico sobre a política dos media – menos “quarto poder” que “o quarto do poder” – e a sua natureza ideologicamente perversa é capaz de ser mais pertinente hoje do que no ano da sua estreia. De facto, também aqui vinga o feliz timing desta proposta de redescoberta de Verhoeven. Ou não seria Donald Trump uma personagem perfeitamente passível de ter um programa só seu na network que, várias vezes, invade o filme na sua própria imanência. Seja para dizer “join us”, seja para dizer “you’re fired”, o produto mediático que é Trump cabia no agenda-setting satirizado pelo filme de Verhoeven. Nesse sentido, este é o seu mais inteiro pedaço de Kulturkritic – que, apetece-me apostar, provocaria uma gargalhada ou duas a um Theodor Adorno e a um Guy Debord. Porque há aqui, claramente, um efeito de Medusa explorado por Verhoeven com um muito acutilante sentido crítico. A cultura que ali se retrata é a cultura produtora do filme, na escala e profundidade da acção. Tudo grande e tudo superficial. Espectáculo puro, sem responsabilidades. Filme terrorista, apetece chamá-lo. A América a ver-se ao espelho e a não gostar do que vê? Verhoeven é ousado, mas, levado por esse ímpeto de devorar tudo, acaba comido pela sua própria caricatura, banalizando o seu gestus satírico após alguns minutos. De qualquer modo, deixo a sugestão: guarde-se o espectador para a aparição do bicho repulsivo, mole e mucoso, que lembra “a origem do mundo”, mas que também nos recorda de como Verhoeven é um delirante e despudorado misógino.
Esta crónica é o meu contributo para a discussão da mesa das LisbonTalks, Paul Verhoeven, o independente megalómano, que tem lugar na sala 2 do Cinema São Jorge, dia 26 de Abril (terça-feira). A mesa abre mais cedo do que é normal, às 17h30, para ser projectado o documentário sobre Paul Verhoeven Tricked: Paul’s Experience. A seguir, uma mesa de críticos irá debater o cinema do cineasta holandês. As LisbonTalks deste ano foram organizadas pelo À pala de Walsh.