A minha estada em Tui foi, antes de mais, uma viagem na sala escura por uma programação variada que mistura cinema experimental, documentário e ficção. Uma viagem que fiz na qualidade de membro do Prémio CAMIRA, na companhia de Mireia Iniesta, actriz no magnífico El academia de las musas (2016) de José Luis Guerín (ainda por estrear em Portugal), e de Gabriela Wondracek Linck, realizadora, programadora e crítica de cinema em revistas como La Furia Umana e Interlúdio. O desafio passava por vermos todos os filmes da Secção Oficial e do programa Ressonâncias, um grupo de 11 filmes que consubstanciam propostas estéticas e políticas, nalguns casos, radicalmente diferentes entre si. Tudo isto em apenas três dias de festival. Uma tarefa que só conseguimos cumprir com prazer e ligeireza graças à equipa que organiza o Play-Doc, que está de parabéns pela qualidade dos filmes apresentados e a quem agradeço calorosamente a hospitalidade com que me receberam. Em especial, e antes de “descer” aos filmes, quero deixar uma nota de gratidão à direcção do Play-Doc, constituída por Sara García e Ángel Sánchez.
Dos filmes que nós, júri CAMIRA, tivemos o gosto de ver e apreciar, houve três que se me fixaram mais aos olhos. Primeiro, houve uma descoberta no interessantíssimo programa Ressonâncias, concebido pela portuguesa Raquel Schefer (vice-delegada CAMIRA em França), e que privilegiou cinema experimental que contempla algum tipo de proposta política ou etnográfica. Este grupo de filmes, visto no primeiro dia, não me largou durante todo o festival – e ainda agora me revisita o espírito de quando em vez. Dos filmes mostrados destacou-se aos meus olhos um em particular: Occidente (2014), curta-metragem experimental da brasileira Ana Vaz. A ele atribuímos a Menção Honrosa do prémio CAMIRA por causa da forma como desconstrói o passado colonial português na paisagem contemporânea lisboeta e pelo muito impressivo trabalho plástico de montagem, som-imagem, que dá forma a essa desconstrução crítica. Das imagens do Tejo, do Padrão dos Descobrimentos, do Terreiro do Paço, das ondas do mar que o povo português, gloriosamente, enfrentou para chegar ao Brasil, à Índia e ao Extremo Oriente, passamos para as imagens caseiras de um almoço em família. Não é uma família qualquer. Ela é parte, sugere a montagem de imagem (e, sobretudo, de som) de Ana Vaz, de uma espécie de aristocracia pós-colonial portuguesa.
A câmara de Ana Vaz não larga os movimentos (as pequenas acções e os olhares) da empregadita negra que serve o manjar em requintadas loiças. À mesa vemos, a certa altura, o realizador Gabriel Abrantes. A câmara é implacável a comentar este quadro que a montagem, como ondas do mar, faz inundar de signos do passado colonial português. O que Ana Vaz produz em Occidente remete para uma das mais acutilantes críticas ao colonialismo branco alguma vez transpostas para celulóide: Unsere Afrikareise (1966) de Peter Kubelka. Tanto Vaz como Kubelka trabalham por acumulação de imagens procurando insinuar subtilmente, nas entrelinhas da montagem, o discurso mais demolidor sobre a irresponsabilidade histórica e a hipocrisia moderna do homem branco face aos seus antecedentes de abuso e exploração dos povos por ele colonizados. É belo e mordaz. Mistura explosiva que tinha de ser, de algum modo, premiada por este júri.
Outro filme que me ficou a trabalhar (n)o espírito foi Le terrain (2013), média-metragem que mereceu da nossa parte a distinção máxima que nos competia atribuir. É um filme de chambre desenrolado no seio de uma pequena comunidade cigana vivendo na periferia de Paris. Começa por ser uma espécie de versão contemporânea de Il tetto (O Tecto, 1956) de Vittorio De Sica, mas, depois de haver quatro paredes elevadas rudemente – e sem autorização – naquele descampado, a câmara entra quarto adentro, fixando-se à intimidade – tão pouco vista e representada no grande ecrã – de uma grande família cigana. Aí o De Sica vira Pedro Costa. O realizador francês, de ascendência iraniana, Bijan Anquetil documenta, com um rigor e vigor formais próximos da ficção, uma fina narrativa que acompanha o antes, o durante e conclui no pós edificação dessa moradia ilegal. Lá dentro, entre as quatro paredes, ouvimos desabafos, confissões e conversa fiada. Estamos ali com aquelas pessoas. Apetece mesmo dizer: somos aquelas pessoas enquanto a câmara de Bijan filma.
Por fim, e recordando os cinco filmes vistos na Secção Oficial, um filme em particular envolveu-me mais que os outros. Um envolvimento talvez calculado e demasiado fácil produzido pela dupla de realizadores, Robert Machoian e Rodrigo Ojeda-Beck, mas a verdade é que God Bless the Child (2015) é um filme estimável sobre essa terra de ninguém, bela, livre, mas também desamparada e “vadia”, que é a infância. Depois de uma conversa com os meus colegas de Júri, cheguei à fórmula cinéfila que o resume: um cruzamento algures entre Dare mo shiranai (Ninguém Sabe, 2004) e, como observou a minha colega Gabriela, Gummo (1997). Crianças abandonadas à sua sorte e uma câmara que está sempre pronta a apanhar cada instante, sem grandes enfeites. Os adultos estão ausentes – e esta ausência dói em cada plano – e as crianças são fofas – e os quadros bebem dessa “fofura” talvez por demasiado. Contudo, elas também são selvagens – veja-se o puto reguila, cujo veneno na língua o torna grotescamente mais velho do que é, como se aqui estivesse em forma de criança, “criança velha”, um dos anões de Werner Herzog no inquietante Auch Zwerge haben klein angefangen (Os anões também crescem de baixo, 1970). Apesar de calculadamente enternecedor, God Bless the Child consegue coferir interessantes nuances a este retrato de crianças à deriva no vazio de uma ausência: a da sua mãe que nunca mais volta.