Suburra. Bairro da velha Roma, local das classes mais desfavorecidas, onde o crime e a prostituição alegremente juntavam as mãos. A própria fonética da palavra instiga logo pensamentos sobre sujidade e outras coisas pouco aprazíveis. Séculos e séculos depois, Suburra (2015) é nome de filme, produzido pela Netflix, e que dará origem a uma série em 2017. É, também, mais um capítulo cinematográfico sobre o crime como actividade inerente a todas as áreas da vida, embora com aquele particular “sabor” a “la bella italia” que torna tudo mais facilmente reconhecível. Já se viu melhor, já se viu pior. Andiamo.
Em Suburra, Roma não está a arder, mas antes a ser copiosamente vergastada por demenciais torrentes de chuva. Já não se via tanta pluviosidade artificial num filme desde que o Brad Pitt e o Morgan Freeman andavam à caça do Kevin Spacey. E se aí, a chuva funcionava como mera ferramenta atmosférica, neste filme de Stefano Sollima a chuvinha, além dessa faceta “ambiental”, aspira igualmente a um papel simbólico, tanto mais evidente quanto mais o filme se aproxima do fim. A velha história da intervenção divina como lavagem das almas. Não é por esta óbvia moralidade climática que o filme releva de alguns dos seus problemas, embora um dos mais grotescos planos de Suburra esteja directamente relacionado com a queda de água. O Sorrentino, perto desse plano, é rapaz moderado.
Um desses problemas é um dos mais facilmente identificáveis num filme: a banda-sonora e o uso que se faz dela. O Sollima um dia acordou a ouvir os M83 [que tão bem estavam no Oblivion (Esquecido, 2013)] e decidiu que queria enfiar todas as músicas do seu reportório num filme, sem quaisquer preocupações com contexto ou harmonia. Excessiva e deslocalizada, a música dos franceses apenas acrescenta ruído sonoro a sequências onde o “som da acção” já era mais do que suficiente para criar ambiência. Resulta uma vez (numa festa, até com o seu quê de comicidade), para depois se tornar em matéria repetitiva e pouco suportável, a descair a maior parte do tempo para uma “poesia das imagens” confrangedora. Mas o Stefano deve ter pensado que era cool, e trata de inundar as imagens com electrónica espacial. É lá com ele.
A esses pontuais focos de interesse, junta-se o principal, que é a própria mecânica narrativa de Suburra. O argumento, em sim, é bem escrito, demorando o tempo suficiente para estabelecer as ligações entre as várias personagens, daí resultando uma coralidade finamente tecida, sem pontas soltas.
Como se não bastasse, ao ruído áudio, junta-se o ruído visual, numa conjugacão de planos distorcidos, slow motions, brincadeiras com o foco, e décors a transbordar de barroco, com variadas vezes o entulho dos adereços a ocupar de forma problemática grande parte do plano. E, tal como na apropriação musical, essa “fealdade” visual proporciona os seus méritos ao nível das risadas, através da felliniana casa de um cigano milionário, onde vivem, em conjunto, duzentas pessoas em permanente algazarra, mobílias desactualizadas já no tempo de Luís XIV, quilos de ouro por todo o lado, televisões gigantescas e um cão assassino numa gaiola gigantesca. É uma maravilha de palhaçada, nonsense bem vindo para contrastar com a gravidade do “tema”.
A esses pontuais focos de interesse, junta-se o principal, que é a própria mecânica narrativa de Suburra. O argumento, em sim, é bem escrito, demorando o tempo suficiente para estabelecer as ligações entre as várias personagens, daí resultando uma coralidade finamente tecida, sem pontas soltas. Por este motivo ( e quase só por este) Suburra já merece uma vista de olhos, sobretudo para quem se interesse por estas matérias promíscuas entre crime, religião, política e o campo imobiliário. Embora nos antípodas da esquelética formalidade do Spotlight (O Caso Spotlight, 2015), há esse ponto comum de ambos os filmes criarem história(s) suficientemente forte(s) para criarem o mínimo de uma empatia. Nem tudo pode ser obra-prima, olha que car (censura).
E há os actores, sobretudo três para memória futura: Pierfrancesco Favino, como corrupto membro do Governo, impecável chefe de família e não menos impecável amante de prostitutas e drogas – tão bom ter poder e dinheiro; Adamo Dionisi, como Manfredi, o tal cigano na sua casa explosiva, uma espécie de Bud Spencer do DIY criminal, a mostrar que o capitalismo desregulado não é arena apenas circunscrita aos gatunos dos poderosos; e Greta Scarano, silenciosa, rosto destruído pela droga, e a par da chuva o verdadeiro anjo exterminador de Suburra. No final, há vestígios de paraíso. Pelo menos até ao próximo filme.