Um dos filmes essenciais da filmografia de Hou Hsiao-hsien, Xi meng ren sheng (The Puppetmaster, 1993) revisita o período de colonização japonesa em Taiwan a partir da figura de um reputado mestre de marionetas. Simultaneamente documentário e ficção, Xi meng ren sheng é uma experiência única na obra de Hou. Uma meditação sobre arte e identidade.
Xi meng ren sheng é considerado o segundo tomo de uma trilogia sobre a história de Taiwan que Hou Hsiao-hsien iniciou com Beiqing chengshi (A Cidade da Dor, 1989) e concluiu com Hao nan hao nü (Good Men, Good Women, 1995). Ao longo de quase duas horas e meia acompanhamos episódios da vida de Li Tien-lu (1910-1998), aclamado mestre marionetista, ao mesmo tempo que revisitamos o período determinante em que Taiwan foi uma colónia do Japão. Cronologicamente, a acção de Beiqing chengshi começa onde Xi meng ren sheng acaba, e a de Hao nan hao nü passa-se parcialmente no período a seguir ao primeiro. Embora, tal como em todos os filmes de Hou que lidam com a história de Taiwan, a preocupação primordial seja com o quotidiano de indivíduos e famílias, é difícil argumentar que o fundo histórico é de pouca importância. O filme começa, aliás, com uma explicação que situa a acção num período específico. Em 1895, a China foi derrotada na Primeira Guerra Sino-Japonesa. Pelo tratado de Shimonoseki foi obrigada a ceder Taiwan e o arquipélago de Pescadores ao Japão. O domínio japonês desses territórios terminou com o final da Segunda Guerra Mundial em 1945. Dado o contexto, o filme segue para o que realmente importa a Hou: as pessoas. É uma cena familiar que, aliás, tem paralelos com muitas outras da sua filmografia. Um grupo de pessoas numa mesa a comer e falar. Um avô pede para ver o neto e eis que chega o bebé Li Tien-lu (recorde-se que o próprio Li fizera de avô em alguns filmes anteriores de Hou). Ele “nasce” aos nossos olhos e nasce pela sua palavra pois é Li quem narra a sua própria história.
Em taiwanês (todo o filme é falado em taiwanês e, em certos momentos, japonês) e tendo o mínimo de preocupação com noções de modernidade imposta, Li vai contando a sua infância e juventude. A madrasta e o pai com quem não se dava, os patrões, a filha de um deles com quem se casou, a amante. Fala de coisas a que chamaríamos superstição ou destino, como as coisas eram e como foram porque Li assim as viveu e assim as escolheu contar. Nem sempre o que vemos coincide com o que Li conta. Haverá um mais verdadeiro do que o outro? Memória e cinema têm sempre algo de ficção e este filme lida com ambos numa composição de várias camadas.
Memória e cinema têm sempre algo de ficção e este filme lida com ambos numa composição de várias camadas.
Há uma dimensão da vida de Li que é particularmente importante para o filme: a arte. O sucesso enorme que alcançou ao longo da vida transformou-o num “tesouro nacional.” Por muito que o homem seja indissociável do artista, é por Li Tien-lu ser o “mestre das marionetas” que Hou fez um filme sobre ele. Neste têm tanta importância as cenas familiares como as dos espectáculos. Há longas cenas de budaixi (teatro de luva) e de gezaixi (ópera em dialecto Minnan também conhecida como “ópera taiwanesa”), formas de arte com origens na China continental mas que se desenvolveram de forma diferente em Taiwan.
Li vive da sua arte e isso requere por vezes capacidade de adaptação às imposições do estado colonial de que era súbdito. Quando a política japonesa endurece na ilha e restringe espectáculos na rua, Li passa a trabalhar num teatro fechado. Quando performances em taiwanês são proibidas, Li integra uma trupe de propaganda japonesa cujas peças de budaixi são sobre soldados que lutam contra os americanos. Li continua a actuar porque essa é a sua forma de ganhar a vida. No limite, a criação artistica de Li foi a criadora do Li que vemos. A arte foi a sua forma radical de sobreviver. Quando a guerra termina e o filme está quase a acabar, vemos que Li continua a actuar mesmo extremamente doente. Essa é uma forma de assegurar, para ele e a comunidade que era então o seu público e o seu empregador, um regresso à normalidade.
Os caracteres do título original podem ser traduzidos por “espectáculo/peça, sonho, vida”. De facto, são múltiplas as dimensões de performance no filme sendo que o “sonho” remete para a dimensão imaginária da recriação (verbal de Li e audiovisual de Hou). Há as performances de budaixi e gezaixi, a dos actores interpretando parte da vida de Li, a do próprio Li que não só narra como aparece presencialmente prosseguindo o seu testemunho directamente para a câmara. E há, claro, uma dimensão quase metafórica do cinema enquanto performance da vida. Não é por acaso que o nome de uma das trupes de Li, “quase como a vida”, já foi usado para descrever o cinema de Hou Hsiao-hsien. Os enquadramentos dos planos (longos e normalmente fixos) contribuem bastante para acentuar a sensação de que somos todos espectadores das cenas da vida de Li, nós e Hou, já que a câmara parece estar sempre a olhar de fora, à distância.
Um filme sobre arte mas, sempre, sobre Taiwan. Das paisagens exteriores que os humanos habitam mas não dominam aos sons que enriquecem a obra desde a abertura – instrumentais, canções, sons da natureza, diegéticos e não diegéticos mas sempre essenciais. Esta é uma história de um artista taiwanês em Taiwan. E, embora subtil, não é menos interessante o retrato do contexto histórico, da forma como os colonizadores tentaram controlar os locais (o filme alude a como impuseram a sua forma de registar nascimentos, obrigaram os homens a cortar a trança usada pelos chineses durante a dinastia Qing, impuseram o uso do seu idioma, etc.). Uma das figuras mais curiosas do filme é a de um soldado japonês, constantemente embriagado, que faz uma série de comentários depreciativos sobre Li. Hou filma-o não como uma face do mal mas como um ser humano patético e algo perdido. Até os japoneses representados como mais generosos têm sempre algo de outsider. Um dos últimos planos, com os habitantes locais a destruírem aviões japoneses no final da guerra para os venderem como ferro velho e poderem pagar a performance de Li é, sem dúvida, uma imagem poderosa da resiliência dos taiwaneses.
Ao colocar Li como narrador e figura central, Hou dá a voz e a primazia não a figuras de poder a que muitas vezes se relega o registo da História mas a um artista popular cujo trabalho, não por acaso, envolve formas específicas de contar histórias. Hou filma variações das suas recordações, recriando memórias possíveis do que foi Taiwan, e criando ele próprio um objecto sobre a construção da identidade dessa ilha e dos que a habitam.
Xi men ren sheng passa na Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema dia 26 de Abril, às 18h30.