À primeira vista Ace in the Hole (O Grande Carnaval, 1951) de Billy Wilder parece ser sobre a história de um homem preso num buraco, numa gruta desabada, e como essa história se transforma num evento de interesse nacional. Porém, à medida que a história avança, torna-se claro que na realidade o filme é sobre o jornalista que transforma esse homem num ícone e essa história num acontecimento. O repórter é um homem perdido num limbo, à procura de uma qualquer redenção pessoal, ele próprio preso num buraco existencial, com o seu mundo prestes a desmoronar-se. Wilder apresenta a história desses dois homens unidos por um acaso como uma fábula sobre escolhas morais e como as consequências dessas escolhas ensombram o destino das personagens. É uma visão sulfúrica sobre o funcionamento da imprensa americana a partir de um dos seus repórteres, mas que pode também ser lido como um comentário mais abrangente sobre a cultura americana, sobre um certo espírito de procura de sucesso a qualquer custo.
Billy Wilder, um dos mais prolíferos e inspirados realizadores da história de Hollywood, começou a sua carreira como argumentista, e nota-se neste filme uma certa primazia às palavras e à estrutura narrativa como forma de contar uma história. O primeiro acto de Ace in The Hole é bastante clássico, com a exposição das personagens e das suas motivações, de execução irrepreensível, através da qual ficamos a pensar que conhecemos a personagem principal em pouco tempo, em duas cenas apenas. Na primeira sequência, Chuck Tatum (interpretado por Kirk Douglas), um repórter cuja carreira já viu melhores dias, irrompe intempestivamente por uma redacção de um jornal de uma pequena cidade americana, sugerindo que o editor teria sorte em contrata-lo, dada a sua experiência em jornais de maior prestígio. Com um discurso elaborado, Chuck faz uma rápida análise do editor que procura convencer – “Nunca vi ninguém que usasse suspensórios e cinto ao mesmo tempo, deduzo que seja um homem cauteloso” – e depois de um duelo de palavras consegue garantir o posto, mais por pena do editor do que pelo currículo de Chuck, deduzimos nós.
É um discurso exasperado e grandioso de alguém que não esconde que está disposto a tudo (…) para encontrar uma história que o torne relevante, que o possa levar para longe dali
Na segunda sequência, Chuck aparece já ele vestido de suspensórios e cinto, aborrecido pela falta de notícias com maior “interesse”, e só depois de enumerar as coisas que sente falta naquela cidade esquecida (repetindo o nome de Nova Iorque, como se tratasse de um paraíso distante) é que percebemos que já passou um ano desde a cena anterior. É um discurso exasperado e grandioso de alguém que não esconde que está disposto a tudo (“se não houver notícias posso ir até morder um cão) para encontrar uma história que o torne relevante, que o possa levar para longe dali. É também um exemplo do trabalho de Kirk Douglas na criação desta personagem, muitas vezes próxima de um overacting, cuja arrogância exibida parece querer esconder um medo gritante de se tornar irrelevante. Quando numa viagem de rotina surge a notícia de um homem soterrado numa gruta, Chuck reluz com a hipótese de tornar uma pequena história num evento global.
Chuck parece ter encontrado o seu ace in the hole, a expressão que dá origem ao título do filme. Já o título português do filme (O Grande Carnaval) é uma tradução literal de um título utilizado depois do insucesso da estreia americana, que evoca o espectáculo que vai construir-se à volta deste caso. Depois de uma visita à gruta onde Chuck conversa com Leo, o homem soterrado, Chuck vai exagerar as dimensões da tragédia de modo a “vender” a história. Numa teia de manipulação de factos, corrupção dos esforços de salvamento e conivência com as autoridades locais – simbolizadas na forma do xerife local, à procura de uma re-eleição, que surge pela primeira vez no filme a alimentar a sua cobra de estimação – Chuck trabalha para tornar-se mais importante que a própria história, como um injustiçado a quem finalmente todos prestam atenção. Em breve começam a chegar pessoas que acampam à porta da mina, aparecem outros meios de comunicação, instalam-se caravanas para vender comida e diversões para passar o tempo, vendem-se lembranças, pintam-se slogans políticos na encosta da mina – o circo mediático materializa-se debaixo de uma névoa negra, alimentado pelo apetite voraz de uma audiência cúmplice que exige ser entretida.
O percurso emocional de Chuck ao longo do filme, desde a exasperação inicial pelo exílio num jornal de uma cidade irrelevante, que passa pela exaltação de voltar a estar no centro das atenções, até ao desespero final quando toma consciência das repercussões das suas acções, ou seja, a sua deterioração moral, é ilustrada pela relação com as personagens à sua volta. O jovem fotógrafo que o acompanha na viagem, inicialmente idealista e ingénuo, transfigura-se rapidamente num oportunista, pronto a aprender com o calculismo de Chuck, de tal forma que surpreende até este. A relação tempestuosa de Chuck com Lorraine, a mulher de Leo, é ainda mais intrigante. Se de início ela desconfia das intenções de Chuck, permanente desiludida com a sua condição, deixa-se seduzir aos poucos pelas perspectivas de lucrar com a história, e até pela figura de Chuck. Esta mudança de espírito é sinalizada por Wilder através de uma única composição: com Lorraine de malas feitas e à espera do autocarro para fugir, Chuck diz-lhe claramente “somos três os enterrados aqui: o Leo, eu e tu” – o autocarro entra em cena escondendo a figura de Lorraine, e quando o autocarro arranca deveria deixar uma imagem vazia, mas ela continua no mesmo sítio onde antes estava, incapaz de sair.
O centro do filme passa no entanto pela relação entre Chuck e Leo, o homem soterrado e que passa grande parte do filme fora de cena. Chuck toma Leo por um simplório de quem se pode aproveitar, mas à medida que a pressão mediática no exterior cresce e o controlo do desfecho da história foge a Chuck, este encontra em Leo uma solidão que aproxima os dois homens. Estas cenas de diálogo entre os dois são filmadas como quadros religiosos, quer pela iluminação, quer pelo enquadramento fechado sobre os rostos martirizados das personagens. É a imagem-espelho de um olhar sombrio sobre as acções das personagens, ao mesmo tempo cínico e desesperado, aproximando o filme do género noir.
É importante notar que depois de ter ganho três Óscares em onze nomeações com o filme anterior, Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses, 1950), Ace in the Hole foi na altura um falhanço comercial e junto da crítica para Wilder. Bosley Crowther escreveu no New York Times, em 1951, sobre o filme: “But, regrettably, in his demonstration of the tricks and deceits (…) Mr. Wilder has let imagination so fully take command of his yarn that it presents not only a distortion of journalistic practice but something of a dramatic grotesque.” Pelo contrário, o filme antecipa acertadamente uma visão da degeneração do papel dos media, e demonstra assim estar à frente do seu tempo. Acima de tudo, demonstra também que Wilder estava mais preocupado em deixar a sua marca, sem medo do falhanço, do que em agradar ao pensamento da altura. A prova é que, enquanto o elo mais fraco é atropelado pela máquina do sistema, o “Grande Carnaval” perpetua-se, tal como o filme.
Ace in the Hole de Billy Wilder é exibido dia 24 de Maio (amanhã) pelo Cineclube de Joane, no Pequeno Auditório da Casa das Artes de V. N. de Famalicão.