O realizador e artista plástico tailandês Apichatpong Weerasethakul esteve em Lisboa durante o mês de Abril para dar um seminário no curso de doutoramento de Estudos Artísticos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e para apresentar a sua última obra Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015). Carlos Natálio e Sabrina D. Marques aproveitaram a ocasião e foram ao seu encontro para uma breve entrevista que teve lugar na Cinemateca Portuguesa. A conversa girou à volta de sonhos, massagens, luzes, doenças e despertares.
Carlos Natálio (CN) – Comecemos com uma nota cómica. Pelo menos desde Lung Boonmee raluek chat (O Tio Booonmee, Que Se Lembra das Suas Vidas Passadas, 2011), mas talvez até antes, que uma série de elementos estéticos e narrativos entraram no imaginário do cinema contemporâneo. Como é que lida com os cineastas que hoje tentam emular o estilo de Apichatpong, um verdadeiro exército de “replicantes apichatponguianos”?
A sério? Tenho um pouco de inveja dessa perspectiva das marcas, das influências, pois eu, como realizador, não experiencio o meu próprio filme. Porque eu sei demasiado à partida: o background, os elementos técnicos, as personagens. É como um mágico que nunca pode experimentar a sua própria magia pois ele está por detrás do truque. Penso que todos os realizadores têm este problema – o de não saberem o que é o seu próprio filme. Claro que me sinto lisonjeado se há pessoas que se deixam influenciar pelo meu trabalho.
CN – Qual a sua relação com o cinema português?
Só através dos filmes de Manoel de Oliveira. Gosto muito da forma como trata a história, a dimensão da realidade. Mas a realidade é que vejo muito pouco cinema… Já vi alguns filmes de Pedro Costa…Apesar de ser amigo do Miguel Gomes ainda não vi as Mil e Uma Noites…
Sabrina D. Marques (SDM) – O Apichatpong, como também o Pedro Costa, têm sido dos poucos nomes do cinema contemporâneo a levar o cinema para fora da sala, inserindo-o nos contextos dos museus, das instalações. Trabalhando estas áreas, como é que adequa os dispositivos às narrativas que quer trabalhar?
O cinema pode ser muito limitado, com imensas regras. E por vezes a imagem em movimento é mais do que isso. Por exemplo, a instalação serve-me para explorar outros meios, com regras diferentes. E depois é como um método de vai-vem: é necessária a regra do cinema para levar o público a algum sítio. É necessária a escuridão, por exemplo. Mas é verdade que a própria regra do cinema está em mudança e talvez a instalação nos faça imaginar o futuro do cinema, talvez abra o seu enquadramento. É uma inevitabilidade da tecnologia.
CN – Os seus pais são ambos médicos. E frequentemente filma em hospitais, aborda situações de doenças, curas. Além destas referências naturais, pergunto-lhe: considera-se uma espécie de médico que opera através do cinema?
Não! Penso que é o inverso. A partir da experiência dos meus pais decidi não me tornar médico, pois é preciso muito tempo e dedicação aos outros e ao exterior. E o cinema é o contrário: é ir no sentido do interior. Os médicos dão aos outros. Eu, como realizador, apenas dou algo apenas a mim mesmo. É um processo de descoberta pessoal: como vejo o mundo e a História, através da forma como faço cinema. O cinema para mim é também um processo de travar amizades: a minha relação com Jenjira Pongpas só foi possível através do cinema. Sem o cinema, creio que ficaria em casa com o meu cão, uma vez que sou bastante introvertido. Só para mim é que o cinema se tornou uma espécie de terapia.
SDM – Quando uma pessoa recupera de uma doença, será esse um momento de libertação face à vida activa? Um momento de convalescença, como uma possibilidade de recuperação dos ritmos da sociedade capitalista, como uma pausa para sonhar?
Sim. Talvez isso explique o meu interesse na doença como parte da vida. Quando se vai ao médico e se diz que se tem uma doença não há nada de errado. É suposto adoecer-se, faz parte da vida. É suposto morrermos. A doença é uma tomada de consciência da fragilidade da vida, de que por vezes certas coisas na tua vida não são importantes. E trabalhar isso no cinema é aproveitar a vida enquanto não estamos doentes.
CN – Tem consciência que aqui no mundo ocidental as pessoas vão ver os seus filmes como uma terapia pessoal, ou espécie de “massagem à alma” ou algo do género? Um antídoto à agitação do mundo contemporâneo.
É difícil dizer… Eu tento abrir os meus filmes para que as pessoas os possam abordar de forma diferente. Não conscientemente, claro, pois não penso nunca no público quando filmo. Por exemplo, para mim o último filme [Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015)] é o oposto dessa serenidade. É um filme muito triste, sobre a inércia da vida. Quando o vejo só sinto escuridão mesmo que estejamos a ver luzes reais. Mas, sim, há diversas abordagens: pela relação com a natureza, pelo ritmo lento. É muito subjectiva a forma como massajamos a outra pessoa [risos].
SDM – No seu último filme existe esta associação entre as ideias de exército e de nação. Quais os códigos censórios debaixo dos quais teve de trabalhar na Tailândia? Quais os riscos que teve de correr?
Corri muito poucos riscos. Primeiro porque não quero ter uma abordagem política mais directa. Há outras formas melhores para me exprimir politicamente. O cinema é outra coisa. Por exemplo : o poder reflectir o sentimento interior de inércia, de querer dormir. Mas, ao mesmo tempo, mesmo esta abordagem começa a tornar-se difícil na Tailândia. Tudo pode ser censurado no meu país uma vez que tudo opera segundo a lógica do medo. O exército ameaça a população que fala contra ele. De formas diferentes: por vezes levam-te para o campo para a denominada “mudança de comportamento”. E aí, ou cedes ou toda a tua família e dinheiro ficam em perigo. Este tipo de ameaça é hoje uma realidade na Tailândia. Um ambiente muito triste e muito anti-criatividade. É muito difícil fazer cinema nestas condições.
SDM – Sendo actualmente o mais conhecido realizador do país sente que tem uma missão em relação ao futuro da Tailândia?
Gostava de me poder exprimir livremente pois actualmente é muito arriscado. Antes, eu tratava o cinema como uma religião mas agora é só mais uma coisa e eu duvido cada vez mais dele. Quando penso no cinema e na vida, creio que não é um acto heróico do cinema expor a violência política. Interessa-me mais, por exemplo, a relação que o Manoel de Oliveira tem com a história do seu país. Mas é preciso liberdade para fazer isso…
CN – Disse numa entrevista sobre Cemitério do Esplendor que sentia o simbolismo como uma espécie de prisão com que tinha de trabalhar. Até onde podemos estender a metáfora dos soldados adormecidos: à sociedade tailandesa e respectivo ambiente político, ao cinema tailandês, à nossa capacidade de ver e ouvir?
A ideia é estendê-la até onde fizer sentido para o espectador. É essa a beleza do cinema. Fico muito surpreendido com as diferentes maneiras dos espectadores se conectarem a algo que fiz de forma tão pessoal.
SDM – Há uma noção forte de impermanência nos seus filmes. A mudança da cultura tailandesa, um sentimento de perda. Sente as relações multiculturais do seu país com o exterior como uma ameaça às tradições locais?
A Tailândia é um país muito jovem. Embora nunca tenhamos sido colonizados, tivemos muita colonização interna. Por isso o país é uma mistura de culturas. Ainda hoje com as influências americanas e ocidentais. E influências chinesas (o meu avô é de lá). Por isso estamos sempre a mudar ao nível das tradições. Outra coisa é: o que se pensa da cultura tailandesa é tudo propaganda. O que se vê como turista são estratégias de comunicação com o exterior. Não temos uma noção muito antiga de história, como por exemplo o Japão.
SDM – E sobre o cinema tailandês. Considera que continua uma certa tradição de um cinema ancorado em mitos, em fábulas, em histórias de folclore?
Como disse, também em relação ao cinema tailandês é difícil dizer o que é. Ao não termos uma identidade sólida, o cinema reflecte isso. Lembro-me de crescer a ver o que pensava ser o cinema tailandês, mas que afinal era uma mera cópia do estilo de Hollywood. Havia filmes de desastres como o The Towering Inferno (A Torre do Inferno, 1974) ou Earthquake (Terramoto, 1974) dos quais fazíamos as nossas versões. Até tínhamos um filme blaxpoitation com os actores pintados de negro. Por isso, não há uma identidade da qual partir. Estou mais ocupado com as questões de como o medium se pode exprimir, partindo da tradição do cinema americano experimental. Aqui sim, sinto mais liberdade de influência e criação.
CN – Em Cemitério do Esplendor existe este subtema dos super-heróis, da referência ao Super-Homem. Como é que vê essa ligação?
Tem a ver com as minhas lembranças e com as da Jenjira. Quando era mais jovem o Super-Homem era alguém que me atraía fisicamente, pelos seus super-poderes, mas também pelo seu aspecto físico. Há um ideal de masculinidade que se ligou a um período de formação da minha identidade sexual. E creio que funciona muito bem quando tens no filme alguém que não tem poderes de todo, está só ali, a dormir. Quero questionar esse “superpoder” do homem, a habilidade de sentir algo da realidade para além do normal. Essa habilidade pode transformar o cinema também, pois penso que estamos encurralados no enquadramento. O cinema é uma forma bem primitiva, mas se tiveres a habilidade de testemunhar/sentir a beleza da vida, talvez já não precises de cinema. O melhor cinema do mundo já está aqui [aponta para a cabeça].
SDM – O seu cinema opera na mudança: entre o mundo físico e metafísico. Em vários filmes leva o espectador para o mundo interior das personagens. Constrói-se um “manifesto” para que coloquemos lado a lado estas duas camadas da existência?
Penso que ainda existe outra camada: a da própria consciência do espectador. O que menciona funciona como apenas uma camada lisa (flat) no ecrã, que se relaciona com a história e com as personagens. O que me preocupa é como essa camada funciona com a do espectador: como se entrelaçam e relacionam. Por vezes, com um pequeno gesto insignificante da personagem, o espectador começa a apreciar o fluir do tempo. Talvez noutros filmes não interesse mas o fluir temporal é fundamental nos meus, para evocar uma outra realidade na camada do espectador. Interessa-me isto, pois estamos tão habituados ao tempo do cinema que é muito diferente do tempo real. Falava no outro dia com um amigo sobre o despertar do sono no cinema. No cinema, acorda-se e já está. Na vida real, leva tempo. O cinema precisa de comprimir o tempo. Por isso, para mim, é importante esticar um pouco o tempo no cinema, como se nos espreguiçássemos.
CN – Em Cemitério do Esplendor há um décor omnipotente, que é ao mesmo tempo escola, hospital, palácio, cemitério. Aqui também vários tempos e histórias se tocam. Qual a importância para si da cidade de Khon Kaen, local onde cresceu?
Essa omnipresença tem a ver com o processo de mudança constante da identidade. Ou com a definição do que é a nossa casa. Mesmo agora, se olharmos para os livros escolares na Tailândia é tudo tão primitivo, tão enformado por uma propaganda do regime. Com a internet as pessoas começam a comparar elementos e a questionar-se sobre o que de facto se está a passar. Neste filme há várias camadas de informação e tempo que se comprimem no mesmo plano, resultando em parte na desorientação das personagens. E do público, também.
CN – Outro elemento no filme é a relação com os sonhos. Os sonhos são algo de libertador ou algo que, como sugere o filme, devemos aprender a tomar consciência?
Há vários elementos nos sonhos. Há uma dimensão libertadora neles, sim. Mas também podemos reflectir que não podemos controlar os sonhos, que somos uma marioneta nas suas mãos. E ainda que o espectador faz parte do sonho do filme. Ele é guiado pela luz e perde parte da sua consciência neste vai vem com o ecrã. Quando fazemos filmes podemos mudar as cores na pós-produção. A mudança das cores neste meu último filme é um sinal disso mesmo, de que o cinema é sobre controlo e mudança. Nesse sentido, o filme está a controlar-te, a mudar-te. O filme em si é uma máquina de cores que mudam…
SDM – Curioso que eu e o Carlos não concordamos sobre a hipótese do despertar do soldado poder ou não ser um sonho da Jen.
Para mim é como na última cena de O Tio Boonmee, em que no quarto de hotel vemos pessoas a dobrar. A camada da realidade em Cemitério também é isso: a ideia de um universo óptico, no qual tudo tem o seu fluir e o seu tempo.