Assente raízes nesta Sopa de Planos com árvores. As mais frondosas e resplandecentes, as mais despidas e caídas. A câmara precisa, normalmente, de recuar e verticalizar-se para capturar toda a sua poesia. O vento agita os ramos e o tempo que sopra modela a sua figura. As árvores falam uma linguagem imemorial. Elas estão firmemente plantadas numa história que nos supera. São testemunhas de uma sabedoria que nós, pequenitos e insignificantes, não conseguimos compreender de todo: a Natureza. Aqui está ele: um hino a elas, as árvores.
Estas duas árvores vigiam a ilusão de Genjuro. Despidas, sem sombra abundante para oferecer, limitam-se a observar o delírio do homem e a fazerem parte dele. Isso mesmo: seria razoável supor que estes troncos e ramos desolados pudessem nem sequer estar ali… É que, com efeito, Ugetsu monogatari (Os Contos da Lua Vaga, 1953) é uma das obras mais inefáveis de Kenji Mizoguchi. Toda paisagem se molda, incluindo um rosto descoberto atrás de um véu, ludibriando o homem – um homem. Os passos de um ceramista estão então destinados a cair no rasto do fantasma de uma mulher, que o atrairá até ao seu palácio, levando-o preso pela corrente do fascínio mais incontrolável – a beleza. Wakasa, essa mulher feita aparição venusta (cujo papel correspondeu ao primeiro momento de Machiko Kyo no cinema de Mizoguchi) traz consigo o idílio e a promessa da satisfação total. O plano que vemos é no jardim desse palácio, em que Genjuro (Masayuki Mori), depois de ouvir uma música tocada e cantada por Wakasa, dá sinais de exaustão, desespero no próprio júbilo que está a viver. “Nunca imaginei que tais prazeres existissem”, diz, procurando agarrar-se àquele corpo que lhe foge e ri alto, como Deus e o diabo numa mesma figura. As árvores, melancólicas de nudez, são traço fundamental no cenário de paraíso. Testemunham a fantasia com nobreza fúnebre e com a sabedoria que, ancestralmente, acreditamos que possuem.
Inês Lourenço
Esta árvore iluminada pertence a Sud Pralad (Tropical Malady) de Apichatpong Weerasethakul. Ela é, escrevi-o há pouco tempo, um dos símbolos icónicos que para mim melhor representam o cinema do tailandês. Não é nada de muito racional, talvez até só sugestivo. Mas, no que tem de articulável, ela é a com-posição visual entre dois sistemas de mundo. Quer neste, quer depois em Loong Boonmee (O Tio Booonmee…, 2010) a natureza funde-se com a lógica do maravilhoso, mostrando-nos que homens, animais, espíritos, primitivismo – no fundo, o mítico e o naturalismo racionalista – não beneficiam da lógica da cesura mas sim do seu pacato diálogo. No segundo segmento de Sud havia sim essa proposta meio tourneuriana, meio conradiana, de perda ou encontro, no coração das trevas, da possibilidade de se devorar ou ser devorado por um tigre mitológico, soldado ferido de outras eras. O soldado, sabe-se no fim da história, acaba por animalizar-se. Por sua vez, o cinema de Apichatpong segue esse lógica, como pode ver-se no seu último filme – Rak ti Khon Kaen (Cemitério do Esplendor, 2015) – em que já não se vislumbra o “sobre-natural”, mas em que este surge integrado no quotidiano. O cineasta pede-nos apenas que sejamos já capazes de não fazer essa distinção, tornando-nos super-heróis nesse dito quotidiano, vendo mais, ouvindo mais, ou por outras palavras, interiorizando todo o esplendor desta árvore iluminada.
Carlos Natálio
Um dos planos finais. Gente perdida no deserto americano. Zona de índios e cowboys. A caravana chega a uma árvore com o topo queimado. O arbusto flamejante do episódio de Moisés? Todos se aproximam. Será um sinal. Bom? Mau? Tocam nos ramos. É de verdade. A caravana vinha trazendo um índio como prisioneiro. Ele está solto. Ela olha através da árvore e vê-o, do outro lado. Ele afasta-se. Não foge, simplesmente afasta-se. Os ramos enquadram a partida. Os ramos também lhe enquadram o rosto. Como nos outros filmes de Reichardt, tudo gira sobre a impossibilidade do homem regressar à natureza. Essa utopia é desconstruída neste plano: ele, o índio, que ainda não se libertou da terra e do céu está do outro lado, ela (e todos os outros) estão do lado de cá. A árvore separa-os. Tudo isto num esquema de campo/contra-campo. Tudo isto em Meek’s Cutoff (O Atalho, 2010).
Ricardo Vieira Lisboa
Árvore da vida? Não, árvore da morte. E do amor, claro. Em The Hanging Tree, um dos bons filmes de Delmer Daves, o Dr. Joseph Frail, última participação de Gary Cooper num western, é um médico de métodos pouco ortodoxos que alberga e protege um criminoso em fuga, convertendo-o num assistente. Depois, uma jovem sueca, Elizabeth Mahler (Maria Schell), é socorrida por ele após a charrete em que seguia ter sido brutalmente atacada. O Dr. Frail vai curar as queimaduras que cobrem o corpo de Mahler, e a cegueira que a atinge temporariamente. Entre os dois começa-se a desenvolver uma relação platónica de amor. Quando os olhos começam a ver, rebenta uma paixão intensa que vai afastar Frail (em inglês frail significa “frágil”) e progressivamente deixando Mahler entregue a si mesma. Onde entra aqui a magnífica árvore que abre e encerra o filme? Ela representa a lei de uma cidadela governada pela selvajaria da sua comunidade que só tem um fito na vida: encontrar ouro, custe o que custar. Frail será condenado ao enforcamento nessa árvore por ter defendido Mahler contra a barbárie. A resposta de Mahler representa a vitória do amor sobre a riqueza material. A árvore da morte transforma-se numa árvore do amor. Debaixo dos seus ramos sinistros, e da corda que já estava devidamente enlaçada, à medida do pescoço de Frail, penduram-se agora os sonhos do amor… “I left my heart in the hanging tree”, diz a magnífica canção de Marty Robbins que abre e fecha o filme. Como a árvore.
Luís Mendonça