Existem na história do cinema assuntos que teimam em manter-se obtusos na sua resolução, um deles prende-se (qual lapa) à questão da autoria das obras póstumas não terminadas – não que isso ocupe as mentes inquietas de muito boa gente, mas na minha lá de vez em quando vai surgindo e acaba por moer o juízo. Vários foram os filmes que ficaram por completar, nuns o realizador não teve tempo de deitar os pós de perlimpimpim, noutros só descascou as batatas e temperou de sal. O problema do estado da confecção é um dos primeiros dilemas que se assolam às gentes, outro prende-se com o seguimento daquilo que já se havia feito (sendo verde, será sopa de ervilhas ou creme de alho-francês?).
José Fonseca e Costa faleceu a 1 de Novembro do ano passado durante a rodagem deste Axilas (2016) tendo à data sido noticiado que dois terços do filme já haviam sido filmados – juntando-se assim o filme ao vasto elenco de obras (não) terminadas à posteriori ou in extremis por outros que não os próprios: de Orson Welles contam-se vários [It’s All True, The Other Side of the Wind, Don Quijote, Too Much Johnson…], mas há ainda Que Viva Mexico!, Something Got To Give, L’Enfer, I, Claudius. Paulo Mil Homens terminou o projecto, sendo o responsável pela montagem e por filmar sequências extra de modo a garantir a coerência do projecto. Não me querendo demorar nestes dilemas sobre os percentuais de autoria apenas relevo a necessidade deste último em afirmar que “Axilas é um filme completo (…)“.
Posta de lado a questiúncula inicial demoro-me um pouco mais noutra velha e aborrecida disputa: a adaptação literária. Axilas baseia-se num pequeníssimo conto homónimo de Rubem Fonseca compilado no livro de contos Axilas & outras histórias indecorosas. Nessa meia dúzia de páginas o escritor brasileiro tem o dom de cruzar o prazer da boceta e do cu (primeiramente ao pénis, depois à língua) com referências à prosa apetitosa de Machado de Assis e à poesia suada de Drummond de Andrade. Aliás, Rubem Fonseca diverte-se no ziguezaguear constante entre a alta cultura (Keats ou o Concerto K 219 de Mozart) e a baixa (os prazeres e desejos das carnes femininas), lambuzando-se na intermédia, a baixa elevada ou a alta rebaixada (Bispo do Rosário, William Friedkin e os referidos Drummond e Assis). Uma enxurrada de referências, citações e homenagens que Rubem Fonseca usa como lápis de colorir para uma história que pouco mais é que um fait divers.
Na adaptação do conto homónimo Mozart vira Tchaikovsky, o Museu de Belas-Artes vira o Museu Colecção Berardo, Machado de Assis vira Camilo e boceta faz-se cona.
O outro Fonseca, José Fonseca e Costa, juntamente com Mário Botequilha, adaptou o conto tratando essencialmente de o transferir para terras lusas, de lhe construir um atmosfera lisboeta (multiplicando personagens secundários que no conto apenas apareciam referidos de raspão). No entanto é curioso notar o que ficou lost in translation na viagem atlântica: Mozart vira Tchaikovsky, “uma exposição de pintores de um hospital de doentes mentais” no Museu de Belas-Artes vira o Museu Colecção Berardo, Assis vira Camilo, boceta faz-se cona e L’Origine du monde de Courbet marca as constante recorrências ao onanismo cultural – e daqui muito se tira sobre o que separa a cultura lusa da transatlântica. Se o leitor estiver atento percebe pois que Axilas podia ser afinal um filme perdido de João César Monteiro.
Escreveu Miguel Gomes no catálogo que a Cinemateca Portuguesa dedicou ao realizador, “A propósito do cinema de João César Monteiro costuma-se referir a dialéctica entre alta e baixa cultura, mas penso que a que mais me importa, e que é paralela a esta, é o modo como o realizador se relaciona com o cinema, enquanto matéria e modus operandi da projecção de um olhar”. Fonseca-Mil Homens parecem ter seguido com régua e esquadro o ensinamento de Gomes e o filme de ambos resulta pois num regresso constante a lugares e situações conhecidas do cinema do outro: as tabernas com o tinto que pinta os dentes e as sinfonias clássicas da Gulbenkian, o moralismo religioso em choque com a devassidão sexual, a decadência social das classes altas e a falsa inocência imberbe de um punheteiro safado. Posto de outro modo, Axilas é um bombom com sabor a mofo: não está no ponto, mas satisfaz sobejamente a gulodice cinéfila.
(Em jeito de post scriptum chamo a atenção para aquilo que se inscreve no jazigo que a certa altura surge no filme, “Família Fonseca”: o realizador encenando a sua própria morte, piscadela de olho ao nonagenário escritor, uma homenagem subtil dos que lhe encerraram a obra ou todas as anteriores?)