Subitement s’offrit à son désir l’image de la Foscarina (…) gardant les vestiges de cent masques sur ce visage qui avait simulé la fureur des passions mortelles.
Gabriele D’Annunzio, Le feu
O ser se decompõe de uma forma sensacional entre seu ser e seu parecer, entre si mesmo e este tigre de papel que ele dá a ver.
Roger Caillois, Méduse et Cie
No bar e bordel de Mon-amour, um “go-between” fantasista aproxima-se de nossa femme fatale-detetive privada – dois arquétipos esbatidos à luz do abajur indefectivelmente kitsch, detalhe palimpsêstico sob o qual reconhecemos décor, chiaroscuro e gestos de Macau a Shanghai gesture – e lamenta nunca ter sido transparente: “Quando jovem, eu interpretei o Pierrot e dancei uma valsa; sempre chamei a atenção entre os meus, nunca consegui dançar sem chamar a atenção”. E repete a valsa do passado, presentificando todo este tempo decorrido em uma auto-mimeses onde a operação tardia de Change pas de main (1975) se reconhece e mortifica: Vecchiali, ao contrário do valsista saudoso, nunca quis ser exatamente transparente – e por esta expressão, diegeticamente citada pelo personagem, entendamos tudo: nunca aspirou a ser clássico, mas também nunca desdenhou os atributos clássicos que são talvez a grande virtù da mise en scène à francesa.
Change pas de main não é exceção a esta regra, pois sua montagem de planos estilhaçados, seus raccords diretivos, seus planos centrais são de fatura clássica, já que buscam antes de tudo serem inteligíveis ao espectador; a clareza e a distinção cartesianas, porém sem a secura teoremática prescrita por estas, porque a obra de Vecchiali também é, como Lumière d’eté (O Céu é de Todos, 1943) e Le crime de monsieur Lange (O Crime do Sr. Lange, 1936), um filme que dança: digressões, personagens que flutuam e sucumbem ao influxo de seus devaneios, maquinações languianas travestidas de complot político da Cinquième République, com direito a, no entr’acte, mascaradas orgíacas que acrescentam o gênero X ao repertório de escrutínio hermenêutico que o cinema tardio (de Argento, Fassbinder, De Palma) exerceu sobre a Summa das histórias do cinema.
Change pas de main, em suma, não cede jamais à tentação que assombra o cinema de Fassbinder, ao qual, pelo uso acintoso do décor como personagem onipresente e ocluso, central maquinaria de fantasmagorias, ele nos leva por vezes a pensar: a auto-complacência. A ronda das máscaras, o desfile das taras, o cortejo vertiginoso dos simulacros se encontram solidamente fundados sobre um esqueleto de filme, límpido e preciso cristal sobre o qual se recortam os imbróglios da intriga como as inverossimilhanças de caracteres: Vecchiali não se perde nas escaramuças da própria retórica, como alguns Fassbinder, demasiado fascinados com a própria expertise para voltarem os olhos para o espectador.
Change pas de main continua a abrigar, sob o invólucro de seus golpes de cena e o nomadismo de suas máscaras, um thriller polar, uma comédia polemista de qüiproquós sobre o diabolismo do Poder, um pornô “para-si” sobre os outsiders, e isto com a translucidez artesanal de nossas obras mais inocentes. Vecchiali sabe-se e se demonstra tardio, consciência infeliz que não é contemporânea de Grémillon e de Duvivier [Remorques (1941) e La tête d’un homme (O Preço de uma Vida, 1933) são os filmes que assombram boa parte de seu cinema], e sim de Tavernier, Techiné, Noroît. Change pas de main, assim, será um filme “de maneiras”, um herdeiro e um leitor de códigos e de rubricas que ele está condenado a reelaborar, a trabalhar maniacamente, mas jamais propriamente criar, Abgrund contra o qual se desenham as coordenadas do trama, o crescendo dos arpejos e o agonístico dos golpes desta aventuresca poupée russe que é a história do cinema ultramoderno: originário, jamais original, pois a culpa endividada para com os Pais é superior à insolência criativa do Filho.
Amarrado e entalhado como um filme de confecção clássica, Change pas de main não é um artefato maneirista, espécime que inscreve na própria carne o motivo magistral do passado e o trabalha incansavelmente; a “base” discretamente gélida de sua construção torna-o infenso aos espectros que intimidam os personagens (a Argélia, a necrofilia), e nesta justa medida de distância “de si para si mesmo”, temos um filme sobre maneiras: o décor, como o gestual e a dicção são aterrados pela sombra de Sternberg, pelos três quartos de perfil de Marlene (Helène Surgère), pelo olhar casmurramente melancólico de Sybille Schmitz, mas a azáfama de personas como de códigos que povoam o imaginário deste filme tenazmente votado ao imaginário (a masturbação, o travestismo: brinquedos do Id) não pretende jamais restituir a atmosfera de um filme da UFA nos 70 pós-ocaso desta outra utopia (imaginária), 1968: não é mais possível ser mimético sem regredir à experiência primitivista de que a belle image clássica nos libertou, não é desejável representar um corpus de gestos como um arsenal de réplicas sem sabermos que o modelo definitivamente foi revogado em nome de seu simulacro, e que tudo o que nos resta é celebrar este simulacro: não mais o Mundo, mas uma Imagem e uma Ideia do Mundo. Change pas de main o festeja exemplarmente: o nomadismo da Máscara, o imponderável do Jogo, a cena carnavalizada das núpcias entre Eros e Thanatos são os avatares desta celebração.
A orgia é a “figura retórica” que permite ao filme demonstrar a cumplicidade, nos subterrâneos do Poder e do desejo, entre a alta burguesia política e a “mão-de-obra”, sexual e estelionatária, dos subúrbios parisienses: Helène Surgère (iminente ministra), Michel Delahaye (ex-coronel) e seu filho psicopata são o triângulo sob a intercessão do qual mapeamos as escalas e os pontos de imantação do Poder, onívoro animal cujos tentáculos se estendem do rés-do-cu às cúpulas da Cidade, e retoma-se o circuito. Mas é a masturbação o seu grande leitmotif orquestral, pois podemos considerar que a psicopatia e o travestismo – de que é “acusado” o personagem do perverso principal, pois há muitos aqui – são experiências radicalmente solitárias, desterritorizalizadas, exiladas de jouissance, e sobretudo porque, segundo a inspiração do imaginário masturbatório, “não dão em nada”, permitindo um exercício absolutamente gratuito da parte maldita do Desejo, finalmente liberta da submissão a fins exteriores à sua economia libidinal, fins alienantes e aliciantes de sua pujança primeira: masturbatórias são as orgias do cabaret Mon-Amour, pois filmadas para saciar os solilóquios eróticos de uma alta burguesa e para seviciar a reputação de outra; masturbatória é relação de Isa-Margherite com o seu passado junto ao coronel na Argélia, expressa no culto das fotografias acumuladas na parede de seu quarto dos fundos; masturbatório é o desejo carnívoro de Alain Bourgeois, pois só consegue gozar quando, travestido de mulher, assassina a parceira, e assim eterniza a pulsão de morte ao engalaná-la com os prestígios sibaritas de Eros.
A cena mais lírica do filme como a mais “extrema”- aliás, ambas belíssimas digressões, pervertendo o thriller político com a intrusão da rêverie e do pastiche hardcore – aparecem comandadas pelo signo de Saturno da masturbação: a primeira nos mostra uma lânguida Mézières acariciada lancinantemente (orquestração deliqüescente de Vincent na trilha, pastéis de Strouvé na foto) pela amante e por um jovem garçom semi-nu, em sua garçonière; a segunda é quando, durante a orgia final, Bouvet-Alain Bourgeois prolonga infinitamente o orgasmo de uma das “partners”, mergulhando uma faca em seu dorso e continua, extático, a foder a mulher. A masturbação é um exercício eminentemente fantasmagórico no qual o Outro como o Mundo são agora subsumidos pelo ego narcísico do sujeito, coadjuvantes auxiliares em sua empreitada onipotente de soberania sobre o “Fora”: tudo torna-se imagem, e neste filme dedicado à mise en scène do fantasma suntuosamente icônica, pois a imagem (Bild) é uma superfície porosa que o sujeito do Desejo e senhor da terra pode gestar e regular, usurpar e manipular a seu bel-gosto. Change pas de main nos conta a Gesta desta usurpação e finalmente a ruína deste império.