Vai fazer agora um ano que Jacques Audiard recebeu das mãos do júri presidido pelos irmãos Coen a Palma de Ouro de Cannes. Foi uma das mais inesperadas consagrações na história do festival. Pouco se havia escrito a propósito deste drama social sobre um homem, uma mulher e uma criança do Sri Lanka que fogem para os subúrbios de Paris na posse de identidades falsas que os vão obrigar a viver como uma família. Dheepan (Dheepan – Refúgio, 2015) terá beneficiado daquilo que costumo apelidar de “síndrome do filme do meio”: quando há uma dispersão de gostos entre os membros do júri, normalmente o prémio máximo acaba destinado àquele filme que, sem aquecer ou arrefecer, é mais capaz de gerar consensos. Foi, portanto, deste modo que um filme embaraçado consigo mesmo ganhou a Palma de Ouro? É capaz de ter sido.
Audiard não é – nunca foi – um cineasta particularmente subtil, mas até certo ponto Dheepan era um dos seus filmes mais silenciosos, um dos menos ansiosos na procura por um efeito ou por uma “mensagem”. Contudo, chegamos a um momento em que e o próprio protagonista traça uma linha. Essa linha significa uma coisa: a partir dali, o realizador vira as costas às personagens. Já não se compraz em as seguir, na sua lenta e árdua integração naquela comunidade. Foge-lhe o pé da chinela e aquilo que era silencioso, sereno e temperado vira uma explosão de acção estilizada. Os espaços de intimidade, e de contacto tímido com o interior das três personagens que compõem aquela família, dão lugar a um exercício ruidoso de cinema de acção tão abrupto quanto despropositado. Audiard cansa-se das suas personagens e transforma Dheepan num Taxi Driver (1976) que se estampa de frente com um La haine (O Ódio, 1995). Torna-se assim o filme numa fórmula de cinema patética, dada a maneira como parece desfazer-se em desculpas por tudo aquilo que fora antes.
O pobre protagonista, que no exercício das suas funções enquanto “zelador” varreu as escadarias dos prédios, arranjou candeeiros e pôs elevadores a funcionar, torna-se, subitamente, num “boneco articulado” que interpreta uma raiva e que canaliza uma tensão que traem em toda a linha sua própria – tão bem patrocinada até aí no filme – natureza de “homem bom”. É uma loucura duplamente significativa, porque Dheepan como que destrói tudo aquilo que tão judiciosamente havia procurado reparar – uma ordem nem sempre estável, mas quase sempre sossegada, chamada “quotidiano”. Ele sopra contra uma pirâmide feita de cartas, que tanto trabalho lhe deu a erigir. Ora, Audiard faz o mesmo com o filme: passa uma esponja sobre o que fizera antes.
Em Dheepan, uma visão auto-depreciativa da realidade parisiense resulta no seguinte: o caminho mais rápido para “encher” de pertinência discursiva um filme que se revela, a certa altura, aterrado com a sua falta de didactismo.
O realizador de De rouille et d’os (Ferrugem e Osso, 2012) e De battre mon coeur s’est arrêté (De Tanto Bater o Meu Coração Parou, 2005) gosta de efeitos. Ele não se sente à vontade com um filme sobre “um homem bom” que quer viver em paz e ser feliz, mesmo que isso implique esquecer as suas raízes. Audiard não consegue fugir ao seu ADN. Entenda-se: o esforço de contenção inicial, que na realidade ocupa boa parte – e a parte boa – do filme, até à explosão despropositada de sangue, suor e lágrimas, é tão “de fachada” quanto o casamento que liga, no filme, homem e mulher. Audiard nem chega a atingir aqui os picos patéticos – digo agora patético no sentido eisensteiniano do termo – dos seus outros filmes, em que sobressai o frisson dos corpos – os lábios, as pernas, os troncos, as mãos, a fúria da carne e a violência do toque…
Nesse artigo que foi um verdadeiro cocktail molotov lançado à geração de cineastas conformados do pós-guerra, «Uma Certa Tendência do Cinema Francês», o crítico dos Cahiers du cinéma François Truffaut criticava a falsa moralidade da maior parte do cinema francês. Os seus grandes mestres estavam tão convencidos da sua “magistralidade” quanto ideologicamente acomodados a uma crítica preguiçosa aos costumes e à boa moral cristãs. A rebeldia herética das suas posições tornou-se num tique aburguesado da cabeça aos pés. Virou pose. Em Dheepan, uma visão auto-depreciativa da realidade parisiense – como território de uma guerra cega que está em toda a parte – resulta no seguinte: o caminho mais rápido para “encher” de pertinência discursiva um filme que se revela, a certa altura, aterrado com a sua falta de didactismo. A retórica de Audiard é canhestra. Para se atingir o coração da realidade, ele afasta o filme da única realidade que interessa: a das suas personagens e a da luta pela sua sobrevivência. Luta entre elas e com o meio tal como ele se mostra, já suficientemente forte sem todo o fogo de artifício (vão, fátuo) que Audiard acaba tentado a lançar com estrondo nos minutos finais. Não falo aqui, portanto, da luta tonitruante das balas – ou dos cocktails molotov – mas da luta que faz as personagens ganharem raízes num lugar e perdê-las ao mesmo tempo noutro. Para ser mais claro, diria: era aí que estava o filme.
Resumindo e concluindo, o “filme do meio” de Cannes 2015 não soube lidar com o rico espaço intermédio, situado algures entre Paris e o Sri Lanka, que tinha à frente. Audiard queria falar ruidosamente sobre a realidade e não apenas mostrá-la. Quis exibir as suas ideias tendo como pretexto as personagens, de modo a actualizar nelas o “discurso do momento” no que diz respeito ao actual estado geral de medo que perpassa a sociedade francesa – o melhor é mesmo, ó doces e queridos migrantes, tentarem Inglaterra… Enfim, não é de estranhar que Dheepan acabe afogado numa – ou afagado por uma – retórica cobarde e sonsa que faz temer o pior: estará o premiadíssimo “realismo francófono” à beira de se tornar numa “certa tendência”?