Uma das primeiras impressões que tive desta edição do IndieLisboa ocorreu quando, após trocar meia dúzia de palavras com Jean-Gabriel Périot, avistei Vincent Macaigne a descer as escadas do São Jorge naquele seu estilo rock star – rock star, sim, mas profundamente descomplexado, sem afectação, ar sério mas olhar curioso e sincero. Depois disso, cruzei-me com ele várias vezes antes de o ver no ecrã à porta de sessões de cinema, à noite (na Casa do Independente, no Damas) ou simplesmente na rua (ainda o haveria de ver na pele de DJ, mas aí confesso que a apreciação não é tão positiva). Na sua aparência simples (verdadeiramente simples, nem sequer se trata de uma pose négligé) mas rockeira, quase punk (cabelos longos, semi-descolorados, barba por fazer e indumentária cool mas despojada), Macaigne despertou-me um interesse que haveria de ser concretizado no visionamento dos seus filmes e nos Q&A a que assisti, onde se revelou palavroso (como as personagens que interpreta), curioso e alguém genuinamente interessado em discutir os filmes, muitas vezes indo além do que lhe era perguntado ou pedindo de volta o microfone para acrescentar alguma coisa quando o moderador se preparava para mudar de pergunta.
Relativamente ao seu percurso como realizador (ele que é também um importante encenador de teatro, convém não esquecer), escrevi já sobre Dom Juan & Sganarelle (2015) (embora aí o francês também faça algumas aparições como actor), a sua primeira e auspiciosíssima primeira longa-metragem (não tive oportunidade de ver as suas curtas); entre sexta e sábado, tive a oportunidade de vê-lo como actor em três longa-metragens, ficando-me a faltar 2 automnes, 3 hivers (2013, Sébastien Betbeder). Mas quem é, afinal, Vincent Macaigne? E será que as suas personagens estão assim tão distantes do actor, com o qual partilham, desde logo, a aparência (o look de Macaigne é praticamente o mesmo nos filmes e fora deles)?
Une histoire américaine (2015), de Armel Hostiou
Não há como dizê-lo de outra forma (a não ser pelo gozo pelo rebuscado, que não cultivo): Vincent Macaigne é um grande actor. É daqueles a quem tal adjectivação, por mais utilizada que seja, por mais banal que se torne, assentará sempre com a propriedade e o rigor que ela genuinamente possui, em qualquer momento e em qualquer lugar. Macaigne carrega essa intemporalidade na palete de recursos dramáticos que convoca, na fisicalidade do seu corpo, grande e possante (há algo de Gérard Depardieu em si…), a contrastar com a profunda fragilidade emocional das suas personangens. Tanto em Une histoire américaine (2015, Armel Hostiou), como em Tonnerre (2013, Guillaume Brac), como, ainda, em Les deux amis (Os Dois Amigos, 2015, Louis Garrel), Macaigne é o “homem na valeta”, o homem rejeitado por uma mulher, o animal ferido – o “cachorro” a quem, por vezes, só falta mesmo a língua de fora… – que se recusa a lamber as feridas. Como um miúdo que faz uma ferida no chão da escola a jogar futebol mas não resiste à tentação de voltar a jogar no dia seguinte, Macaigne não desinfecta a ferida, não lhe passa Betadine, não coloca um penso, não deixa sarar (vejam-se, ironicamente, os pensos no rosto de Macaigne na imagem acima, momento em que já se transformou na bête que suplica pela atenção da belle). A crosta – a primeira barreira protectiva – nunca chega, por isso, a formar-se, justamente porque Macaigne é avesso à cicatrização, preferindo voltar ao campo de futebol – a um “campo de batalha” chamado Amor – e fazer, numa qualquer disputa de bola, um carrinho de joelho no chão. “Sem medo!”, como se diz na gíria.
Nesse ímpeto autofágico, nessa “fúria de amar”, ele é, também, o homem obstinado, o persistente inveterado – “Stubborn” é o título em inglês para Une histoire américaine (ficamos todos a saber que não é só em Portugal que se escolhem péssimas traduções) –, enfim, o crente na religião do Amor e dos seus “milagres”. Em Dumb & Dumber (Doidos à Solta, 1994, Peter e Bob Farrelly), Jim Carrey atravessava o país de Rhode Island até à casa de de Mary em Aspen (ela absolutamente espantada, pela negativa, com a sua presença) para lhe perguntar que hipóteses é que tinha de ela vir alguma vez a interessar-se por ele. Mary responde “not good” e ele insiste: “You mean, not good like one out of a hundred?”. “One out of a million”, esclarece ela, ao que Carrey, depois de uma longa pausa, responde: “So you’re telling me there’s a chance. Yeah!”. É nesta obstinação optimista, resistente, que se sintetiza a demanda de Macaigne nestes três filmes, alguém que acredita sempre que “é possível” ou, dito ao contrário, que “não há impossíveis”, o que, em tempos de contenção e auto-protecção no que toca ao amor como são os nossos, quando não de cinismo e desprezo, é algo raro, heróico, algo verdadeiramente fora-deste-tempo.
Em Une histoire américaine, depois de ter sido deixado por Barbara, Vincent – e Macaigne, o actor, tem também “Vincent” como primeiro nome, o mesmo sucedendo em Les deux amis, o que sugere, como insinuei no primeiro parágrafo, uma certa vérité entre a pessoa-actor e as suas personagens – comete esse supremo acto arriscado (e que corre quase sempre mal) que é o de ir ter com a amada a outro país to get her back. Barbara, como se advinha logo nos primeiros segundos, está absolutamente noutra, vive agora com um tipo americano que é o oposto de Macaigne (médico, desportista e musculado, todo muito clean e fit). Aliás, Barbara, agora, fala inglês com o namorado, ao contrário do pouco fluente Vincent. É como se Barbara falasse “outra língua” – e, quando amamos, não amamos também essa pessoa numa determinada língua?… –, modo de sinalizar, alegoricamente, a definitiva quebra de comunicação – o “distanciamento”, linguístico e afectivo – entre os dois. Se o amor não é também comunicar, fazermo-nos entender com a pessoa amada, então, o que é?
O filme, pela voz agastada mas sempre doce e naif de Macaigne, lida, todo ele, com a questão de felicidade, do que é isso de “ser” ou “estar” feliz, e é com ternura que vemos Macaigne perguntar a várias pessoas, num inglês macarrónico e a lembrar uma criança, “You happy? Yes, happy, you happy?” ou a dizer a certa altura, na noite em que conhece Sofie, “I feel happy now…”. Depois de perceber que não há mesmo comeback com Barbara, Macaigne mergulhará num coma (auto-)induzida, arrastando-se e “sujando” as ruas glamourosas de Nova Iorque como um Frankenstein (um miúdo por quem passa na rua chega a perguntar-lhe se ele é um zombie…), convocando em si, no seu grande corpo abandonado, no visual desleixado e “acamado” que se repetirá de filme para filme (a barba sempre por fazer, o peculiar cabelo desgrenhado, os casacos longos, as várias camadas de roupa “empilhadas” à pressa sobre o seu corpo), alguns dos “destroços ambulantes” mais marcantes da história do cinema: o Harry Dean Stanton de Paris, Texas (1984, Wim Wenders), o Bruno Ganz de Dans la ville blanche (A Cidade Branca, 1983, Alain Tanner), o Marcello Mastroianni de O melissokomos (O Apicultor, 1986, Theodoros Angelopoulos), todos homens abatidos, errantes, de passo desinteressado e olhar vazio no chão. Se bem que do seu lado ternurento e palavroso sobressaia, a outro nível, uma inegável costela cómica e “clownesca”, a lembrar a hiperactividade de um Nanni Moretti e de um Woody Allen ou, por mais estranho que isto soe, a energia bem-intencionada e a constante necessidade auto-explicativa própria de alguém como Ben Stiller.
Embora se empregue como peixeiro, Macaigne entra numa espiral de alienação social progressiva e quase absoluta que só é interrompida pela chegada do pai e da irmã (em mood completamente oposta, própria de quem chega deslumbrado à cidade cantada por Frank Sinatra) e que o tentarão resgatar do abismo e levá-lo de volta para França. Num filme em que, durante boa parte do tempo, e pese embora a tristeza da personagem central, Macaigne arranca muitas gargalhadas ao espectador pelos diversos gags por que vai passando (sobretudo quando conhece a carinhosa Sofie, uma loner como ele na metrópole anónima cheia de gente), o certo é que o ambiente se vai tornando mais e mais pesado, terminando o espectador de coração apertado com esse impressionante plano de Macaigne, de costas, a atirar mecanicamente com uma pá sal grosso para cima do peixe – será que ele volta para a França com a família ou continuará em Nova Iorque a conservar peixe como quem conserva a ilusão de um dia reaver Barbara?
Tonnerre (2013), de Guillaume Brac
Também em Tonnerre, Macaigne é, novamente, um “estrangeiro”, um estranho numa terra (Tonnerre, na província) que, embora seja o lugar em que nasceu, há muito deixou de ser e sentir como sua. Se, aqui, a barreira da língua já não existe, o binómio cidade-campo é agora o prevalecente, com Macaigne a tentar adaptar-se, depois de fugir de Paris para poder compor a sua música em paz, ao ritmo de vida daquele lugarejo, naquele que é um “regresso às origens” e à vida a dois na casa do pai (há assuntos familiares mal resolvidos, aliás…). Para quem acompanha o cinema francês, conhece-lhe uma certa tendência (latente também na literatura, segundo julgo) para narrativas focadas em personagens que, a certa altura, normalmente por força das circunstâncias, chegam a pequenas localidades na província e aí se redescobrem/regeneram, frequentemente apaixonando-se e reencontrando a joie de vivre [o mais recente de que imediatamente me lembro é 3 coeurs (3 Corações, 2014, Benoît Jacquot) e o mais caricatural é, obviamente, Bienvenue chez les Ch’tis (Bem-vindo ao Norte, 2008, Dany Boon)]. É também isso o que acontece com Macaigne, que se enamora perdidamente por Mélodie, uma jovem jornalista de um pasquim local, e que, vendo-se abandonado de um momento para o outro sem meias-explicações, desespera (sempre agarrado ao telemóvel à espera de uma mensagem como um adolescente…). Se, em Une histoire américaine, o sofrimento de Macaigne reside, sobretudo, no sentimento de perda e rejeição, aqui, mais do que isso, o que está em jogo é a incompreensão: porque é que ela me deixou de um momento para o outro e não mais atende o telemóvel, não mais envia uma mensagem, nada? Este rien de rien “justificativo” leva-o, depois de agredir o namorado a quem Mélodie voltou, a sequestrá-la e a fazer-lhe, cara a cara, a pergunta-chave que quase o leva à loucura: porquê? Porquê assim, da noite para o dia? Ela desculpá-lo-á, claro, e safá-lo-á inclusivamente da prisão. O filme termina, porém, enigmaticamente, com pai e filho a andarem de bicicleta, céu cinzento e nuvens em fundo, com uma canção lindíssima e tristíssima a apertar-nos, uma vez mais, o coração: “Cold Times”, de facto.
Em Les deux amis, a primeira longa-metragem de Louis Garrel (que participa também como actor), Macaigne tem em Garrel – seu grande amigo na “vida real”, o que novamente potencia a tal vérité entre cinema e vida, entre o actor e as personagens que interpreta – o amigo-pilar a quem pede, logo no início, que se abstenha de segundas intenções: “Abel, esta não”. “Esta” é Mona, reclusa em precária de quem nunca viremos a saber os motivos para tal (e isso porque, quando ela lhes pergunta se eles querem saber, os dois dizem que não, Garrel a meter-se com a curiosidade do espectador), a qual, involuntariamente, criará uma cisão, ou perto disso, na amizade entre os dois [há aqui óbvias referências a outros “dois amigos” chamados Jules et Jim (Jules e Jim, 1962, François Truffaut)]. A dor pela rejeição (uma vez mais) leva Macaigne a um nível superior de auto-destruição, literalmente falando, cortando um dos pulsos em plena rodagem de um filme sobre as manifestações do Maio de 68 (estamos a falar da família Garrel, pois claro). Uma vez mais, também neste filme, depois de muitos gags e momentos de humor, o final, não sendo catártico (não o é igualmente nos outros dois filmes), é assaz amargo, com Mona a ir-se embora no carro da polícia e os dois, impotentes, sentados no passeio a assistir. Mais do que um filme sobre o amor por uma mulher (o amor-romance), Les deux amis é uma reflexão sobre a amizade enquanto outra forma de amor, de igual ou maior intensidade, disso sendo sintomática a discussão que os dois amigos têm na cama sobre a sua relação, como se de dois namorados se tratassem, as mesmas birras e amuos, o mesmo carinho e compaixão.
Les deux amis (Os Dois Amigos, 2015), de Louis Garrel
Três filmes, três espaços circunscritos e com uma identidade própria (Nova Iorque, Tonnerre, Paris), três histórias de amores não correspondidos e… um Macaigne. Nos três filmes, Macaigne, quase sempre filmado na rua, é sempre, mas sempre, esse homem visceralmente verdadeiro, franco, uma daquelas pessoas cuja sinceridade em excesso lhe traz dissabores (como quando, em Tonnerre, insiste que carregava uma arma consigo na noite dos factos perante um polícia que subliminarmente lhe diz para ele omitir essa parte para seu próprio bem…). Mas uma sinceridade que é, antes de tudo, consigo mesmo, sendo isso que o leva a praticar actos quase nunca bem recebidos pelas suas interlocutoras femininas e assentes no tipo de raciocínio primário que só o amour fou justifica: se o que ele quer é que ela volte para si, se o que ele quer é oferecer-lhe um anel e pedi-la em casamento, porque não, como não… fazê-lo? Tem que o fazer, por mais que a ferida fique com pior aspecto ainda, por mais inconveniente que se afigure aos olhos dos outros, por mais vexante que seja para si próprio. Em Macaigne, não é correcto falar-se de personagens que mostram as suas “entranhas”, pois, se estas evocam uma noção de interior e exterior, no francês, tal separação simplesmente não existe: tudo é visível, não há nada “entranhado” justamente porque não há um “interior” oculto. Pela mesma ordem de razão, e por mais tentador que seja, não é também justo falar-se de personagens com emoções “à flor da pele”, pois também esta expressão convoca a noção de interior (o que está reprimido “debaixo” da pele) e exterior (o que eventualmente é expelido), quando, aqui, nada está “à flor” de nada pela prosaica razão de que não há “camadas” de pele em Macaigne, tudo está a um só nível e tudo é revelado de um jorro só.
Pelo contrário, no final de Les deux amis, Garrel, ao optar pela mentira (dizendo-lhe que nunca foi para a cama com Mona), deixa no espectador a velha sugestão de que, em alguns momentos, ela (a mentira) pode, de facto, ser mesmo a melhor solução. Mas esta é, na verdade, uma solução já “de equilíbrio”, uma solução intelectualizada que envolve uma prévia ponderação de valores. Algo, portanto, obviamente fora do mundo emocionalmente instintivo e vulcânico das personagens interpretadas por Macaigne, algo que elas nunca compreenderiam: como não dizer, como não fazer sempre e só a verdade daquilo que sentimos?