Nesta entrevista, surgiu um slogan que servirá para descrever o que Kevin B. Lee representa no actual panorama da crítica cinematográfica: gabando-se de ter realizado mais de 100 vídeo-ensaios em apenas cinco anos, podemos estar na presença do Louis Lumière de uma nova forma de ver e dar a ver cinema. Kevin B. Lee, conhecido também como “o rei dos vídeo-ensaios”, começou por se destacar na escrita convencional sobre cinema, nas páginas de revistas como a Sight & Sound ou a Cineaste. Nos últimos anos, ao abrigo do site Fandor, especializou-se numa escrita de imagens que tem incidido sobre um variado naipe de universos fílmicos e que, por vezes, viaja pelas suas redondezas tão saturadamente mediadas por ecrãs: Harun Farocki, Steven Spielberg, Andrei Tarkovsky, Michael Bay, Boris Barnet, Paul Thomas Anderson, Maya Deren, entre outros nomes mais ou menos conhecidos da cinematografia mundial, sendo que também tem procurado dar maior visibilidade ao cinema vindo desse “país do futuro” chamado China. Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa entrevistaram este crítico-cineasta ou cineasta-crítico por Skype no contexto da LisbonTalk dedicada ao tema da “Internet como forma-cinema”, que teve lugar no Cinema São Jorge, no dia 22 de Abril.
Ricardo Vieira Lisboa (RVL) – Talvez seja bom começarmos pela questão do nome: além de vídeo-ensaio há o nome académico de “videographic sound and film essay” ou ainda o nome “ensaio audiovisual digital” (que com a palavra digital exclui todas as experiências com vídeo dos anos 1990). Que nome considera mais apropriado para este tipo de objecto?
Não creio que se possa colocar a questão do ponto de vista do mais apropriado, já que é uma forma nova, uma forma em evolução. O termo vídeo-ensaio é mais que tudo conveniente, é capaz de captar a atenção e o interesse de forma mais imediata do que qualquer dos outros nomes. As expressões “audiovisual essay” ou “videographic studies” soam muito académicas, algo que proviria de um universitário, o que não é mau, mas é importante recordar que esta prática é aberta a qualquer pessoa e remete para o que é de facto um ensaio, uma expressão de pensamentos que neste caso toma uma forma audiovisual ou vídeo. Isto é algo que qualquer um pode fazer, e como reflecte a forma como pensamos e expressamos os nossos pensamentos em forma de vídeo, conduz-nos a tentar apresentar a nossa forma de pensar de melhor modo e de modo mais legítimo. Um meio é seguir a via académica ou intelectual, mas cada pessoa pode expressar-se à sua maneira, não tem que ser académico ou intelectual. O uso do vídeo começa a exibir a forma como pensamos. O modo como alguém faz um corte, ou monta imagens pode mostrar o que esse alguém pensa sobre as imagens em movimento e cultura dessas imagens. Isso pode ser tão interessante quanto uma pessoa que evoca uma série de teorias para pensar as imagens em movimento de um modo académico. É a abertura que é importante não esquecer, e o termo vídeo-ensaio tem isso mesmo, essa abertura a várias formas.
Luís Mendonça (LM) – Como, e de que forma, começou a fazer ensaios audiovisuais?
Falando por mim, eu queria ser um realizador e fui-o durante alguns anos em Nova Iorque. Nessa altura comecei a ver muitos filmes como forma de me educar, já que não frequentei a escola de cinema, e por isso havia uma dimensão amadorística nos meus trabalhos como cineasta independente. Eu acreditei que as ferramentas que tinha à minha disposição com a internet e a cultura digital me seriam suficientes e não seria necessário ter uma formação na escola de cinema ou ter uma prática de realizador. Assim comecei a ver muitos filmes e como tinha alguns conhecimentos práticos de cinema, a montagem de vídeo em particular, tive o desejo e o impulso – estou a referir-me a 2005/2006, em que o acesso a ficheiros digitais dos filmes era cada vez mais comum (através do rip de um DVD ou de um Torrent) – de pegar nessas cópias digitais, colocá-las no meu software de montagem, cortar uma sequência e analisá-la, explicá-la a mim mesmo. Esta foi uma forma de me educar sobre o cinema, de como se fazem os filmes. Depois, coloquei alguns destes vídeos no YouTube e as pessoas começaram e discutí-los e eu fiz mais. Tudo começou com uma necessidade básica de aprender realização fazendo filmes com os filmes dos outros. Num período em que a tecnologia me permitia fazê-lo.
LM – Mas também foi crítico de cinema e escreveu sobre cinema, escreveu muito aliás. A ferramenta da escrita tornou-se insuficiente? Foi também por isso que a trocou pelo software de montagem?
Sim, creio que sim. De um ponto de vista específico, eu também era um crítico de cinema amador, estamos a falar do início dos anos 2000, em que com os blogs qualquer pessoa que quisesse escrever sobre cinema podia ser um crítico de cinema. Houve uma democratização e uma abertura das actividades relacionadas com o cinema, que antes pertenciam a profissionais. Os vídeos que fiz foram colocados num blog que tinha, chamado Shooting down pictures, onde escrevia sobre vários filmes. Durante o processo de encontrar novas formas de escrever sobre filmes surgiram os vídeos. Portanto, sim, foi uma forma de praticar crítica de cinema de uma modo diferente, ou melhor, de combinar a crítica de cinema com realização para formar um novo tipo de medium.
LM – Estou a perguntar-lhe isto porque há alguns críticos de cinema que fazem ensaios audiovisuais mas que, ainda assim, os complementam com uma parte escrita. Qual é a importância, para si, de escrever antes ou durante o processo de montagem?
Eu costumava escrever primeiro o argumento do vídeo e depois as imagens simplesmente reflectiam aquilo que tinha escrito. Mas com o tempo tornou-se evidente que era importante para mim começar a montar o filme mal o tinha acabado de ver mesmo antes de escrever o que quer que fosse. Esse foi um processo muito diferente, e que revelou coisas muito diferentes, foi algo que tornou o acto de ver e montar o filme num processo de descoberta. Se vires os meus primeiros vídeo-ensaios, entre 2007 e 2011, a maioria deles é narrada, os mais recentes já são mais exercícios sobre o olhar. Ao pegar em imagens, ao mexer-lhes e ao colocá-las de certo modo descobres qualquer coisa, e se houver algo escrito será sempre algo muito pontual. A escrita não é desnecessária, tem o seu lugar, mas acho que é importante perceber que se pode ser mais sensível à relação entre palavras e imagens e da forma como elas podem formar diferentes tipos de relações. E posso dizer, com certeza, que ao estar mais sensível ao audiovisual me tornei um melhor escritor: por estar mais atento ao filmes vejo-os com mais cuidados. Aconteceu tentar procurar imagens dos filmes para encaixar no meu texto e descobrir que me recordava erradamente dos filmes.
RVL – Sente que quando vê um filme há certas coisas que queria dizer mas que só o conseguiria com o vídeo, que a escrita não lhe permitiria lá chegar?
Isso claramente acontece por vezes. O caso do Godard tem exemplos muito bons, por exemplo, o Histoire(s) du cinéma (1988-1998) e aquilo que ele faz com a montagem expressa algo que o texto não permite. Li um artigo do Jonathan Rosenbaum em 1990 ou 1991 para a revista Film Comment e ele falava de filmes como forma de crítica de cinema e referia o Histoire(s) como uma experiência fascinante e única que só poderia ser captada por uma cinefilia que estava já a morrer. É curioso que ele no início dos anos 90 estivesse a atestar a morte da cultura cinéfila, e a identificar o Histoire(s) como um último hurrah! dessa cultura e Jean-Luc Godard como uma espécie de antigo guardião que colocava todas as suas memórias cinéfilas num só filme e no futuro as gerações vindouras não seriam capazes de compreender aquele objecto. Vinte cinco anos mais tarde faz todo o sentido, para qualquer pessoa que que passou metade da sua vida a ver DVDs e a escrever sobre filmes consegue perceber aquele filme, uma compilação de todos os filmes que te disseram algo de especial na forma de uma testemunho pessoal. É o filme que muitos de nós gostaríamos de fazer. Além de reflectir a cultura cinéfila, é um filme que está à frente do seu tempo e antecipa a cultura do remix. Alguns momentos parecem até formas muito sofisticadas de fan videos. O colapso da alta cultura com as práticas populares dos media é algo que o filme faz de forma belíssima e que problematiza aquilo que se faz com o found footage e com a cultura dos filmes. Mas regressando à tua questão original, estamos a usar os media para comunicar, mais do que alguma vez aconteceu… É algo que até as crianças sabem fazer: procuram umas imagens na Internet, sacam-nas, juntam-nas com uns sons e colocam-nas online. Para elas é algo mais simples de fazer do que proferir uma frase bem estruturada. É apenas um reflexo da nova importância das imagens na nossa forma de falar: o Instagram, os gifs, vídeos que se enviam numa mensagem em vez de escrever. São coisas que estão a acontecer neste momento e é importante ter em consideração a importância das imagens na forma como comunicamos.
LM – Estamos a falar de linguagem e da montagem godardiana, interessa-lhe que os seus ensaios audiovisuais tenham um toque particular?
Não, não me interessa. Para mim o objectivo é compreender e encontrar interesse nos filmes. Por isso, cada um tem uma abordagem diferente. Falei disto com outros vídeo-ensaístas, em particular com o Tony Zhou que tem um estilo muito reconhecível (e é algo a que ele se dedicou muito de modo a que seja facilmente identificável que aquele ensaio é “um Tony Zhou”) e talvez por isso é tão popular. Ele disse-me uma vez que quando vê um vídeo-ensaio meu nunca sabe o que esperar: será um super-cut, um vídeo narrado, ou algo que nunca havia visto. Para mim, a coerência passa por procurar uma nova entrada, uma nova forma de olhar. Os vídeo dele são mais sobre como ensinar, ainda que nos meus a componente eductiva está também presente. Um dos principais motivos pelos quais ele começou a fazer ensaios foi para explicar às pessoas o cinema que lhe interessava: ele falava em comédia visual e as pessoas não percebiam, por isso fez o How To Make Visual Comedy (2014). É importante perceber a quem diriges os teus vídeo-ensaios e porque razão o fazes, isso altera o resultado e a forma do objecto.
LM – Há uma questão recorrente que nos preocupa e que já coloquei a outros vídeo-ensaístas: devem existir ou não barreiras éticas quando se montam os filmes de outras pessoas. Tem essas barreiras, ou crê que deve ser um campo aberto?
Sim, absolutamente aberto. Mas acho que não devemos incluir nesse debate a questão dos direitos de autor, essa é uma dimensão ética relacionada com o dinheiro, com o direito de vender algo. Para mim isso nunca foi uma questão, eu não estava a vender os meus vídeos, nem a fazer dinheiro. Mas como estava a utilizar materiais com direitos de autor tive problemas e a minha conta do YouTube foi desactivada a certa altura. Mas tive pessoas que me apoiaram e que perceberam que os meus vídeos tinham o valor de comentário crítico, separado do valor comercial dos filmes. Aliás, até acrescenta valor aos filmes, já que muitos dos vídeos falam bem dos filmes, geram interesse em vê-los. Deveria ser algo desejado. Com os anos os vídeo-ensaios começaram a ser valorizados, por exemplo, uns colegas meus queriam fazer um ensaio a propósito do último filme do Terrence Malick, Knight of Cups (Cavaleiro de Copas, 2016), e queria ter acesso ao filme. Quando contactou o distribuidor foram eles que lhe perguntaram se ele tinha interesse em fazer um vídeo-ensaio. As coisas estão a inverter-se. O vídeo-ensaio é visto como uma ferramenta de promoção dos filmes. Mas com isto a minha perspectiva alterou-se também. Antes eu achava que lhes estava a fazer um favor, um serviço, agora penso: “devia estar a fazer-vos um favor, é para isto que os vídeo-ensaios servem, são apenas mais uma forma de promoção, ou podem/devem ser uma coisa diferente”. Estas coisas estão sempre a evoluir. Regressando à questão da ética, para mim este é um problema, devo fazer isto por motivos comerciais ou não. Ética implica uma relação entre duas partes, e qual é a lógica e o sentimento, as emoções entre essas partes que a fazem ser uma boa relação.
Recentemente fiz um vídeo-ensaio sobre o último filme da Chantal Akerman, No Home Movie (2015), em que usei música. O distribuidor do filme queixou-se porque a Chantal Akerman não usa música, em particular neste filme, e o meu vídeo acrescentava uma nova camada emocional que não estava originalmente. Eu de facto tinha-me interrogado se o deveria ou não fazer. Por um lado, achei que num vídeo online as pessoas não veriam nunca o vídeo e além disso eu queria mostrar o meu amor pelo filme e pela realizadora e a música era uma forma de o fazer. Por outro lado, estava a trair o espírito artístico da Akerman. Mas depois cheguei à conclusão que o meu vídeo-ensaio é sobre a forma como eu experiencio o filme, eu preciso de música para expressar as minhas emoções ao ver o filme dela. Torna-se um diálogo de escolhas estéticas, um diálogo excelente em que se discute porque é que um som ou uma imagem nos diz algo, por questões estéticas e éticas. São controvérsias que nos permitem perceber melhor as coisas e isso é sempre benéfico.
RVL – Estava a falar da vertente promocional dos vídeo-ensaios, mas já que os ensaios assumem em parte a forma crítica e como é sabido os críticos de cinema nem sempre gostam dos filmes, por que razão existem tão poucos vídeo-ensaios negativos sobre os filmes?
Sim, é verdade. Estas coisas demoram mais tempo a fazer… O Matt Zoller Seitz disse uma vez que ele nunca estaria a ter tanto trabalho e a dispensar tanta energia com um filme de que não gostava. Estes vídeos são obras de amor, originaram dos fan videos, expressam o seu amor pelos filmes. Mas, por exemplo, o Tony Zhou tem vários vídeos que são bastante negativos e nesse caso não é tanto a questão de amor aos filmes, mas mais amor a certos princípios cinematográficos. Ele preocupa-se muito com a qualidade da realização e quando vê certos princípios nos quais ele acredita serem quebrados, isso motiva-o. A mim isso interessa-me menos, mas as questões da cultura fílmica são mais importantes: o marketing, a importância social dos filmes… Transformers: The Premake (2014) é um dos meus vídeos mais críticos porque se dedica a perceber de que forma a cultura fílmica está disposta de tal modo que capitaliza o amor das pessoas para vender os seus filmes. É algo que me interessa muito e no qual acho que é importante ter uma opinião crítica. Não é apenas algo que o coração sente, é também algo que a mente sente. Creio que é por aí que alguém se faz crítico, quando a sua mente se apercebe dos problemas e dos erros e se dedica a expressar o que pensa sobre eles.
RVL – Ainda sobre a questão da promoção, há algo que é recorrente em muitos vídeo-ensaios e em especial nos mais populares: o facto de se dedicar maioritariamente a cinema mainstream norte-americano contemporâneo.
Sim, esse é um problema. Há demasiados ensaios assim, acaba por reflectir a componente geopolítica de quem os faz, e se na escrita isso não se nota tanto nos vídeos é um pouco mais evidente. Diria que 90% dos vídeo-ensaios são sobre cinema americano, e mais que que isso, cinema americano de Hollywood e são feitos por norte-americanos falantes de língua inglesa, maioritariamente homens. Torna-se num estudo sociológico sobre quem são as pessoas que fazem estes objectos, e é importante perceber por que razão é tão desequilibrado, e de que modo se pode ter mais variedade temática e de vozes. Não são apenas os rostos e as origens que são reduzidas, são os próprios modos de pensar, as culturas e a relação com o cinema e com os media. A maioria é americana de classe média que gosta da vida e faz vídeo-ensaios para desenvolver o seu amor pelo cinema – aqui está logo uma questão sócio-política. É importante estar atento às experiências das outras pessoas pelo mundo, mas aí está o paradoxo, é que essas pessoas ou não têm as ferramentas ou os conhecimentos ou sequer os meios para se expressar. Ou o tempo… Assim pessoas como eu que fazem isto por prazer, quase como hobby, terão necessariamente uma visão muito limitada. Por exemplo, ontem estava a falar com uns alunos sobre aquele que é quase um subgénero dos vídeo-ensaios, aqueles que versam sobre o cinema do Wes Anderson. Se pesquisares no Google encontras páginas que compilam dezenas de vídeos sobre o Wes Anderson e todos falam da forma, do estilo, da atenção do realizador a cada detalhe, e este é um problema que eu tenho com os filmes dele, é que são filmes que pouca atenção prestam às coisas fora do seu próprio mundo: são muito divertidos e bem feitos, mas encorajam uma falta de atenção a essas questões. E assim filmes que reflictam sobre esses temas raramente são convertidos em vídeo-ensaios.
LM – Quando preparámos esta estrevista e pensámos nesta questão da falta de representação de cinematografias menos populares, vimos e revimos alguns dos seus ensaios audiovisuais e houve um que nos interessou particularmente: Interface 2.0 (2012), sobre o cinema do Harun Farocki. Comparando-o com o Tranformers: The Premake, é evidente que lhe interessam as imagens como linguagem, como nos filmes de Farocki e Godard. Esta é uma forma de tocar a pele do cinema. Ou como disse Valéry, a pele, a mais profunda das coisas. Disse que os vídeo-ensaios são para si uma ferramenta de ensino muito poderosa, mas não é também uma ferramenta muito estética e plástica?
Sim, a pele do cinema… Eu posso falar desse vídeo e de como foi para mim fazê-lo. Ele estava a falar de como as imagens podem comentar outras imagens. Isso tocou-me muito. Nessa altura essa possibilidade foi muito importante para mim que na altura estava já farto de narração. Isso foi a principal coisa que recebi do interface com o Farocki e os seus filmes. Mas outra coisa interessante de que ele fala é a questão da codificação e descodificação. No original, Interface, ele tentava explicar o que estava a fazer nos seus filmes – de uma modo muito interessante, é um vídeo-ensaio sobre o seu próprio trabalho, algo que eu acho que nunca ninguém havia feito antes. À medida que ele tentava explicar o seu processo ele usava uma série de técnicas, e por isso estava a aplicar uma nova camada – uma nova pele. Assim a questão punha-se sobre se a máquina do cinema era uma que permitia a descodificação ou se codificava, isto é, se servia para explicar ou se criava novos mistérios. E é isso que se está a passar com o vídeo-ensaio, em vez de ser apenas uma ferramenta para perceber filmes é agora algo sobre o que estamos a colocar várias perguntas. O que é isto? Como se tivéssemos acrescentado um nova pele à outra, uma segunda pele, e agora estamos a tentar perceber como ela é, as suas texturas. Eu pensava que estava a fazer isto como realizador e percebi que estava a mergulhar no reino dos new media. E por isso regressei à escola, a uma faculdade que tem um departamento de cinema, vídeo e novos media e era este último que mais me interessava.
Os novos media problematizam a cultura da Internet e as imagens em movimento, mas não como objecto uno num filme, como pedaços que estão constantemente a mover-se e a circular. Hoje em dia as pessoas vêem filmes em pedaços, em pequenos clips, em gifs, fragmentos ou cenas, e é assim que também escrevemos sobre filmes e os partilhamos numa base diária, por exemplo, uma imagem do Leonardo DiCaprio triste pode servir para expressar os meus sentimentos num dia mau. A cultura fílmica desmantelou a nossa ideia do cinema em pedaços que estamos a tentar compreender de novo. Eu achava que era uma pessoa do cinema, mas agora já não consigo pensar no cinema sem pensar nos novos media.
RVL – No vídeo-ensaio What Makes a Video Essay Great (2015) refere que a internet está a tornar os vídeo-ensaios mais rápidos, e comparou o número de palavras e planos por minuto entre um vídeo-ensaio seu e um de Tony Zhou. O que acha que acontecerá se esta tendência se mantiver?
Eu não se sei se todos estão a tornar-se mais rápidos, mas é certo que alguns o estão. Não sei se repararam, mas no último ano o Facebook começou a incluir muito conteúdo vídeo. E a diferença para o YouTube é que agora já nem é sequer necessário carregar no botão play, eles começam automaticamente assim que passas por eles no teu mural, e por isso o método de contagem é diferente. Antes contava-se a popularidade de um vídeo pelo número de hits, o número de vezes que alguém carregava no play, agora são as “impressões”. Basta passares por eles no Facebook, não tens sequer que olhar para eles, mas aconteceu e isso conta. Eu fiz uns vídeo-ensaios este ano sobre os Óscares do ano passado eles não tiveram muito sucesso, o que me fez falar com a Fandor porque eles tinham que os promover, o objectivo é serem populares, foi para isso que os fiz, porque os Óscares são populares. Este ano como eles os colocaram no YouTube tiveram 10 milhões de visualizações únicas, o que é incrível, mais do que alguma outra vez, mas não sei se este número é fidedigno, não sei se eles foram realmente vistos ou não… Mas há que considerar o fenómeno, e este é um modo de ver que existe, semelhante à publicidade dos cartazes nas ruas, em que não olhamos, mas ao passar pela vista deixam uma impressão qualquer. O que é irónico, porque os vídeo-ensaios têm como objectivo obrigar-nos a olhar com mais atenção, mas estão a tornar-se em produtos transacionáveis; são objectos de si mesmos e têm um valor próprio, o que os leva a ser construídos de modo diferente.
Já me disseram que um bom vídeo-ensaio tem que que captar a atenção em 5 segundos… [risos]. E no que respeita à velocidade da narração do Tony Zhou, em que ele fala muito depressa, aquilo é, acima de tudo, uma forma de transmitir uma energia espectacular. Algo semelhante é a utilização de tipografias fortes – é como falar muito alto -, e noto que isso é cada vez mais recorrente nos vídeos, no início há sempre um texto muito forte que é suposto chamar-nos a atenção e fazer-nos querer ver o resto do vídeo. É importante perceber o que é que os vídeo ensaios fazem nos primeiros 5 segundos, porque daí percebe-se que as pessoas têm atenção a estes aspectos. Este tipo de conhecimento vem das pessoas do marketing, as pessoas lêem artigos do género “Como tornar o teu vídeo online melhor”, “Como captar a atenção com um vídeo”… Tudo está a mudar muito rapidamente. No que diz respeito aos vídeo-ensaios, não sei se a expressão certa é que estão a ficar mais rápidos, mas definitivamente há algo, algo que tem que ver com uma certa ansiedade, ansiedade de perder a atenção das pessoas. Isto levanta a questão da forma como se molda a nossa atenção e a forma como o vemos e como pensamos no que vemos no cinema. Se os vídeo-ensaios se estão a tornar parte da cultura da desatenção, então para que servem?
RVL – No entanto, também é verdade que os festivais de cinema, um pouco por todo o mundo, começam a programar vídeo-ensaios, com secções próprias ou integrando-os na sua programação…
Isso expressa uma série de coisas diferentes: pode ser curiosidade, reconhecimento, mas também pode ser ansiedade. Creio que os festivais de cinema no seu conjunto estão a passar por um momento de ansiedade: qual é o nosso lugar? Os festivais de cinema costumavam estar numa posição muito mais forte há dez ou quinze anos atrás, antes dos novos media. Agora as pessoas têm tantas opções para ver filmes ou qualquer outro tipo de conteúdo vídeo e isso leva-nos a perguntar para que serve de facto um festival de cinema. Creio que servem para preservar uma certa ideia de comunidade. A forma como isso se relaciona com a Internet provoca duas posições: ou somos contra ou usamo-la para chamar pessoas para o festival. Queremos tirar as pessoas da frente do computador ou do ecrã do seu telemóvel e colocá-las diante de um ecrã de cinema com outras pessoas. Mas para conseguir isso é preciso usar os pequenos ecrãs para atrair as pessoas ao ecrã maior. Acho que é por isso que programam vídeo-ensaios, ou então usam-nos para chamar a atenção dos filmes que estão a exibir. E tem havido alguns festivais que têm tido programas muito interessantes: o festival de Roterdão, por exemplo, encomendou vídeo-ensaios originais para serem exibidos antes dos filmes respectivos. Isso foi muito interessante, porque foi a primeira vez, creio, que filmes novíssimos, que não estavam editados em DVD foram alvo de vídeo-ensaios.
Eu fiz um vídeo-ensaio sobre o último filme do Hong Sang-Soo antes de o filmes estar editado, e tive que escrever uns emails muito educados à produtora dele a pedir acesso a uma cópia do filme – como eu já tinha feito um vídeo-ensaio sobre ele, isso ajudou. Mas depois isso levou-me a outro problema, tratava-se da estreia do filme em Roterdão e o vídeo-ensaio era exibido antes do filme – eu não queria estragar a experiência do filme, não queria fazer spoilers. Era uma enorme responsabilidade porque estaria a condicionar a forma como as pessoas iam ver o filme. A solução que arranjei foi fazer dois vídeo-ensaios: um passava na parte de cima e outro na parte de baixo do ecrã, o de cima tinha spoilers, o de baixo não. E disse aos espectadores que lhes cabia decidir qual dos dois queriam ver, tapando com a mão a parte do ecrã correspondente. E isto levou a uma nova experiência dos video-ensaios que achei muito engraçada.
LM – Isso é muito engraçado, porque de novo é uma coisa háptica. É outra vez a pele do cinema.
Sim, eu adorei isso. Porque tenho pensado muito na forma como o cinema pode activar os nossos corpos, fazer de nós mais do que simples espectadores, não apenas um par de olhos e um cérebro, mas um corpo inteiro. E por isso esta foi uma experiência incrível, descobrir uma forma que resolvia um problema prático e que também punha em questão a nossa relação física com o cinema.
LM – Creio que estamos a viver numa época pioneira para este formato, e o Kevin é um pioneiro do vídeo-ensaio, uma espécie de Louis Lumière do formato. Por isso, pergunto se esta não será uma forma ainda muito aberta, e se não estamos demasiado espantados com tudo aquilo que podemos fazer com ela.
Os Lumière não achavam que o cinema tinha futuro, faziam coisas sobre o que lhes aparecia à frente e mostravam-nas em pequenas reuniões ou em casa das pessoas, achavam que era apenas uma curiosidade. Não suponham que pudesse ser um negócio, ou uma indústria importante. Ou que se podia fazer coisas com a película, que não era apenas capturar coisas, era também manipulá-las, como fez o Méliès. Há sempre alguém que surge com uma nova ideia. Eu era como os Lumière em 2008 ou 2009: “isto é engraçado, mas eu quero fazer um filme a sério”. Fui para a China, para fazer um documentário, passei lá quatro meses e não fiz qualquer vídeo-ensaio nesse período. Quando voltei foi como se as pessoas se tivessem esquecido de mim. Vejam o Matt Zoller Seitz, o pioneiro dos vídeo-ensaios, com vídeos sobre o Wes Anderson, o Michael Mann, o Terrence Malick, ele até publicou um livro sobre o Wes Anderson por causa dos vídeo-ensaios. Eu nunca adivinharia que os vídeo-ensaios poderiam permitir esse sucesso. E depois há o trabalho do Kogonada e do Tony Zhou que se tornou viral e foi visto por milhões de pessoas e não por apenas dezenas ou centenas de milhares. Há sempre alguém que encontra uma forma de elevar as coisas a outra dimensão. Mas também temos que pensar criticamente sobre o que é isto do vídeo-ensaio. Sempre que há um avanço temos que nos perguntar sobre o que é que essa mudança significa; como é que isto altera a nossa relação com a cultura fílmica, ou cultura dos media em geral.
RVL – Crê que a ferramenta do vídeo-ensaio pode ou deve ser usada como uma forma de imaginar um filme que não existe realmente?
Sim, claro. De certa forma os vídeo-ensaios são filmes que não existiam até que foram feitos. Eles são uma expressão daquilo que existia na imaginação de alguém, na sua mente. Assistir a um filme planta uma semente no espectador e o vídeo-ensaio é o que resulta do crescimento dessa semente e finalmente ganha forma física. É o filme que não existia até que todo o processo de encontro da pessoa com o filme aconteceu e daí germinou algo. Mas esta é a forma como vemos filmes: ver filmes faz-nos criar novos filmes na cabeça, e os vídeo-ensaios dão forma a esses filmes imaginados.
LM – Por vezes tendemos a esquecer os espectadores ou os leitores. Estava a falar há pouco de si, e da importância que os ensaios audiovisuais tiveram para si como realizador, escritor e pensador. De que forma é que os espectadores beneficiam na sua maneira de ver o cinema e pensar o cinema quando vêem ensaios audiovisuais?
A ideia originalmente era que se podia aprender sobre cinema, e assumia-se que os vídeo-ensaios serviam para explicar filmes a outras pessoas. Mas isto é apenas metade da história. Por que razão lemos críticas? Muitas vezes pensamos que lemos críticas porque queremos aprender sobre cinema. Eu lia uma série de críticos porque queria aprender sobre filmes com aquelas pessoas, mas depois percebi que eu queria saber tanto sobre os filmes como queria saber sobre os próprios críticos. Eu quero compreender o modo de pensar deles, como vêem o mundo, não apenas sobre os filmes, mas sobre um ponto de vista. Os vídeo-ensaios funcionam de certo modo como ver através dos olhos de outra pessoa. Por isso não é apenas sobre os filmes, mas sobre ver através da perspectiva de outra pessoa, de uma forma muito vívida, muito mais do que qualquer texto. É algo que altera a nossa forma de olhar. E pode ser uma experiência cinemática, no sentido em que vemos algo de modo muito novo e é isso que é o cinema: ver as coisas de um modo que nunca tínhamos visto antes. Os vídeo-ensaios prolongam esse potencial cinemático, reflectindo no próprio cinema. Não é apenas sobre os filmes, é sobre o acto de ver.