Quando se gosta muito de algo, torna-se complicado enveredar por uma sua apreciação que não envolva certas exuberâncias de linguagem, com determinados maneirismos sempre à espreita. Na questão particular dos filmes, o tom elogioso com que procuramos enquadrar uma determinada obra acaba, não raramente, numa afectação de escrita que só os mais desatentos não darão conta. É quase uma inevitabilidade, diremos, se o objectivo for escrever um texto com o mínimo de balanço entre “seriedade” e emoção. Por exemplo, se estivéssemos num café e alguém, vindo do nada, mencionasse o The Innocents (Os Inocentes, 1961), nós diríamos, em entusiasmo febril, “Foda-se! Que filme!”. Mas aqui, no mundo da escrita, largamos tais rudezas e abraçamos um glorioso pedantismo, alicerçado nessa expressão clássica: “o mais belo dos filmes”. Estabelecidos tais sucessos que até a nós não fazem sentido, redijamos, então: The Innocents é um dos “o mais belo dos filmes”.
Se se enquadrar The Innocents num determinado espaço (Inglaterra), tempo (princípios dos anos sessenta), e género cinematográfico (terror), este segundo filme de Jack Clayton não deixa de ser uma anomalia numa era dominada pelos filmes da Hammer, peças de um gótico artesanal, cores lascivas e psicologismos óbvios evitados a todo o custo. The Innocents, por outro lado, mantendo a fachada gótica do conto The Turn of the Screw, de Henry James, é dominado pelo nada austero mas sim luxuoso preto e branco de alto contraste do genial Freddie Francis e só poderia ser mais freudiano se o próprio Sigmund fosse uma das personagens do filme.
Como em qualquer grande filme, esse caldeirão freudiano e “temático”, onde cabem recalcamentos e traumas sexuais, abandono familiar, incesto ou mesmo pedofilia, é apenas a fonte que serve para alimentar o que verdadeiramente importa: o que fazer com as sombras, onde colocar a câmara, como editar. Pedimos desculpa por quem vê em The Innocents uma “obra-prima” pela sua “coragem” em abordar assuntos tabu, mas convém lembrar que isto é cinema, não é um ensaio literário sobre a psique sexual de certas personagens. Deixemos essa abordagem importantíssima para o Dr. Júlio Machado Vaz e para a Inês Meneses, nos Domingos de manhã da Antena 1. Voltemos ao filme…
…mais concretamente aos seus primeiros três minutos e meio, tão especiais que até os projecionistas de The Innocents ficaram confusos. Desses três minutos e meio, os primeiros quarenta e cinco segundos decorrem na mais completa escuridão, breu acompanhado por uma daquelas canções de embalar, O Willow Waly, que basta ouvir uma vez para não mais sair da memória (para juntar a outro assombramento musical infantil, de nome Pretty Fly, que meia dúzia de anos antes estava no centro de uma sequência extraodinária). E ao segundo quarenta e cinco, surge o ultra famoso logo da 20th Century Fox, mas desprovido do seu ainda mais famoso tema. Foi neste ponto que os projecionistas pensaram que havia algo de errado com as bobinas. 20th Century Fox sem tema? Ainda por cima com a continuação da sinistra balada como fundo sonoro? Não pode. Talvez esteja, neste segundo, o momento mais assustador e arrojado de The Innocents, ainda mais do que o seu final. Imaginamos as pessoas nas salas de cinema, em 1961, a perguntarem umas ás outras o que se estava a passar na “magia da tela”.
As três “pistas sonoras”, aliadas ao fundo preto e ao respectivo contraste com o branco das letras, produz imediatamente o efeito de enviar o espectador para a “alma” do filme, construída à base de um cuidado com as formas que nada têm a ver com processos académicos ou bem-pensantes.
A “segunda parte” dos créditos iniciais do filme de Jack voltam a iniciar-se na escuridão, desta vez com o chilrear de passarinhos como suporte sonoro. Aos passarinhos junta-se um instrumental de contornos obscuros mas sem gorduras excessivas, e os créditos começam a ocupar o espaço direito do plano. Timidamente, um choro faz a sua aparição, e logo de seguida duas mãos juntas ocupam o espaço esquerdo do enquadramento. As três “pistas sonoras”, aliadas ao fundo preto e ao respectivo contraste com o branco das letras, produz imediatamente o efeito de enviar o espectador para a “alma” do filme, construída à base de um cuidado com as formas que nada têm a ver com processos académicos ou bem-pensantes.
A “terceira parte”, continuação invisível da segunda, surge com o entrar de cena da face da Deborah Kerr, actriz que quinze anos anos antes, no Black Narcissus (Quando os Sinos Dobram, 1946), já experimentara viver num clima de repressão sexual, embora dessa vez as cores quase fugissem da “magia da tela”. Aqui, nesta sua primeira aparição, Deborah encontra-se num fervor apelativo a Deus Nosso Senhor para ajudar certas crianças. Enquadrada no extremo do enquadramento, a sua presença dissolve-se num “halo” que só a muito custo não se poderá associar a uma ambiência religiosa. Sem nos rirmos, escrevemos que todos os momentos de Kerr nestes segundos trazem à liça muito mais certas recordações dos mestres realizadores do norte da Europa ou do Bresson do que de um qualquer cinema do horror. É extraodinário, e o melhor é que ainda há mais noventa e seis minutos pela frente.