I went to tell everybody
But I could not get across
Well, I wanna be your lover, baby
I don’t wanna be your boss
Don’t say I never warned you
When your train gets lost
Estes versos fazem parte de “It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry”, canção de Bob Dylan do álbum Highway 61 Revisited (1965) de que também faz parte “Queen Jane Approximately”, o tema da banda sonora de The Dreamers (Os Sonhadores, 2003), de Bernardo Bertolucci, que justifica a inclusão do filme no ciclo “O Outro Lado de Bob Dylan”, a decorrer na Cinemateca Portuguesa. The Dreamers é uma celebração do que foi ser jovem, idealista e cinéfilo em Paris de 1968. Ou talvez seja apenas uma fantasia disso revisitada no século XXI.
Paris, Maio de ‘68, cinefilia. Nicholas Ray e Jean-Luc Godard. Greta Garbo e Marlene Dietrich. Mao Zedong e bourgeois bohèmes. Hendrix e Clapton. Keaton e Chaplin. E muitos mais, convocados num exercício nostálgico e idealista – ou nostálgico por um certo idealismo – de Bertolucci.
Matthew (Michael Pitt), Isabelle (Eva Green), Theo (Louis Garrel). São eles os sonhadores. Os cinéfilos. Os amantes. Todo o filme gira à sua volta, ou em torno daquilo à volta do qual a sua existência revolve. Cinema, essencialmente, mas também música, política, arte, e sexo. Que com ele dialogam numa experiência que se quer total, espiritual e física.
Um trio, threesome, lembrando outros antepassados do grande ecrã. Anunciando também, revendo o filme agora, outros que se lhe seguiram. Pensamos, por exemplo, em U samogo sinego morya (À Beira do Mar Azul, 1936), Bande à part (Bando à parte, 1964) ou Die fetten Jahre sind vorbei (Os Edukadores, 2004). Eles amam-se porque são jovens e belos e idealistas. Ou amam-se porque amam o cinema na mesma medida – desmedidamente.
I was one of the insatiables. The ones you’d always find sitting closest to the screen. Why do we sit so close? Maybe it was because we wanted to receive the images first. […] Maybe, too, the screen was really a screen. It screened us… from the world.
O filme abre com Hendrix e fecha com Piaf. Ouvimos primeiro as palavras: Strange, beautiful. E por último: Je ne regrette rien. Entre estas e as imagens, a juventude toda contida em dias, o mundo num apartamento só para deles. Matthew começa por ser o narrador mas as palavras cedo passam a ser trocadas a três, citadas de vozes de mil. Outras imagens evocadas, recriadas, numa pulsão de viver através do reviver das cenas de outros.
Há os jogos e as montagens, a citação óbvia, o entusiasmo partilhado. E há os grandes-planos, de crença, que contagiam também. O amor deles é o nosso, o amor pelo cinema gerando mais amor pelo cinema. Isabelle avisara: We’re very contagious.
O encontro começa com uma cinemateca fechada, Jean-Pierre Léaud representando quem foi um dia, uma rapariga de cigarro colado e correntes que não prendem. Um protesto, uma fuga. Sombras nas paredes de Paris. I didn’t want that night ever to end. Um apartamento burguês – visão do paraíso, prisão ou liberdade? – o espaço que vão reinventar como seu. Sem controlo, longe dos olhares e das acções dos outros. Theo, o filho de um poeta, interpretado por Louis Garrel, filho de Philippe, o poeta de imagens. A petition is a poem. Tudo o que queriam mudar e agir e lutar. Uma compulsão pela pureza do acto.
Mas a apatia que Theo critica no pai é a sua. You cannot stand outside looking in. Ele nem de fora irá olhar. Discutem a transformação da sociedade na China bebendo uma garrafa de vinho vintage dos pais. Trocam palavras sobre a guerra do Vietname do seu banho de espuma parisiense. Há um poster de La chinoise (O Maoísta, 1967), de Godard, que é citação ora explícita ora implícita. Mas Bertolucci consegue ainda ser terno. Ou olhar ternamente para o quão ingénuos eram aqueles jovens (ou todos os jovens). Lembre-se que o título francês do filme é Innocents e o original da obra de Gilbert Adair no qual o filme se baseia (o escritor escocês também assinou o argumento e reescreveu depois o romance usando o título do filme) é The Holy Innocents. Não deixa de ser curioso como um filme tão falado pelas cenas de sexo e pela questão subjacente de incesto consegue ser ao mesmo tempo tão cândido sobre tudo o que mostra, como uma brincadeira, jeux d’enfants cinéfilos. Os irmãos não conhecem limites e a Matthew é permitido partilhar do amor deles, quando ele se prova capaz. We accept you, one of us.
Dylan chega com a chuva de Paris. … you’re tired of yourself and all of your creations / Won’t you come see me, Queen Jane?
A procura quimérica dessa utopia juvenil que é possível porque o cinema é possível. Dura enquanto o filme durar.
A procura quimérica dessa utopia juvenil que é possível porque o cinema é possível
Enquanto dura, contudo, a insensatez não é permanente. Nem todos sonham com as mesmas cores e sem reservas. Matthew pode ser o bom americano a olhar os europeus como uma fantasia que atrai e aterroriza mas talvez seja também o espectador a quem é permitido por momentos ser “one of them” sem o ser realmente. Oscila-se entre o contágio e o cepticismo, mesmo com toda a avalanche de possibilidades da memória artística de um tempo.
The Dreamers não é, naturalmente, um olhar contemporâneo da geração de ‘68 mas uma evocação de décadas volvidas. Se há um esforço obsessivo pela recriação atmosférica da época, tal é feito com a experiência do que se seguiu. Deixas como as de Matthew sobre Mao, o “grande realizador” de um “épico onde todos são figurantes”, têm um novo sentido à luz de reinterpretações posteriores da China comunista idealizada por muitos jovens intelectuais europeus nos anos 1960 e 1970. Bertolucci, não arrasa com o radicalismo de Theo, compreensível à luz da época, mas o americano surge quase sempre com voz contemporizadora, o sonhador que não tirou completamente os pés da terra. Quanto a Mao, este é uma presença constante – num poster, num candeeiro, até num crachá sobreposto a uma fotografia de Marlene Dietrich em Der blaue engel (O Anjo Azul, 1930) – mas largamente reduzida ao decorativo. Pelo menos em dois momentos do filme, imagens de Mao surgem em cenas eróticas de forma provocadoramente divertida e muito pouco reverencial. Há alguma ironia por entre a fé.
A China comunista e Hollywood, o mundo destes “filhos de Marx e da Coca-Cola”. A casa é o espaço privilegiado da nostalgia visual de Bertolucci (a musical é toda a banda sonora), as paredes quais colagens, colecções de objectos da época que são tão obsessivas na recriação como, curiosamente, certos filmes da China pós-Mao. No entanto, tal como noutros filmes de Bertolucci [de Il Conformista (O Conformista, 1970) a The Last Emperor (O Último Imperador, 1987)], a parafernália decorativa nunca ofusca as figuras imensas dos actores, enormes mesmo nas suas fraquezas, hesitações, medos. Imensas no desejo. E imensas na beleza.
Essa veneração do belo não é aqui ultrapassada pelo cinismo, pela dor e pelo desapontamento do saber o que vem depois. Tudo isso está lá e, ao mesmo tempo, não está. O trio de sonhadores vive “antes da revolução” e está a fazê-la dentro de portas. A liberdade tão total como condenada. You’re never gonna grow – Matthew adverte e nós sabemos que talvez valha a pena lutar por isso. No final, após a união para sempre na tenda (um templo?), o mundo irrompe. Para impelir à morte, ou os salvar dela, resgatados pela rua, para a rua. A fuga é para a frente. Bertolucci talvez escolha um lado mas nós, os espectadores, ficamos do lado de cá, dos que recebem a carga policial, antes que todas as ilusões juvenis se estilhacem de vez. Ficamos do lado do cinema.
The Dreamers passa na Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema dia 27 de Maio, às 15h30.