Falar do Paul Newman realizador é falar obrigatoriamente de Joanne Woodward. É na cadeira de director que Newman transforma um dos casamentos mais bem sucedidos na história de Hollywood numa parceria brilhante que compreende um total de cinco filmes. Começa com a obra de estreia de Newman enquanto realizador, o portentoso Rachel, Rachel (Raquel, Raquel, 1968), e atinge o seu ponto culminante com a sua obra-prima máxima, recentemente editada pela Alambique em Portugal, naquele que é um dos lançamentos em DVD do ano: The Effect of Gamma Rays on Man-in-the-Moon Marigolds (A Influência dos Raios Gama no Comportamento das Margaridas, 1972). Newman e Woodward reencontram-se no drama familiar Harry & Son (O Confronto, 1984), a única vez nestes filmes em que funcionam como um casal enamorado, ainda que, fatalmente, o seu amor não se chegue a cumprir totalmente. Aqui, como no telefilme The Shadow Box (1980) e em The Glass Menagerie (Algemas de Cristal, 1987), Woodward aparece assistida por um conjunto sólido de personagens. As personagens de Woodward sob a direcção de Newman têm em comum a solidão – ou melhor, são atravessadas por um disfuncional sentimento de isolamento – e são caracterizadas por um traço alienante, que as torna pouco capazes de comunicar com o mundo à sua volta.
É interessante ver como, no espaço de 19 anos, a obra do Newman realizador nasce, atinge a sua maturidade dramática e estilística e depois se cristaliza numa imagem, apenas numa imagem, em The Glass Menagerie: a de um unicórnio em vidro que perdeu o corno depois de cair ao chão. A causa do acidente: uma mulher que nunca foi amada – resultado do complexo provocado pela sua perna manca? – dança com um homem que encontra na sua timidez “old fashion”, e translúcida, uma beleza comovente. Os dois giram ao som de uma valsa tocada à distância, num prédio vizinho. O inebriamento do momento rouba-lhes as noções de tempo e de espaço. Quando se preparavam para girar mais uma vez, ele choca contra a mesa onde pousava o pequeno e frágil unicórnio em vidro, que, em resultado do embate, cai no chão e perde o corno. Agora ele já não é diferente. Pode-se juntar aos cavalos que não são “especiais” como ele. É o que acontece com Laura, uma interpretação de partir o coração por Karen Allen. Ela sente-se diferente das outras pessoas e acaba por se comportar em conformidade até ao momento em que decide enfrentar a sua timidez e aceita dançar a valsa pela primeira vez na sua vida.
As inseguranças de Woodward incarnando a protagonista de Rachel, Rachel parecem repercutir neste último filme mais em Laura que na personagem que a mesma actriz interpreta em The Glass Menagerie, Amanda, a matriarca desta família composta pela quebradiça coleccionadora de animaizinhos de vidro e pelo inconformado Tom (outra interpretação fulgurante, desta feita, por John Malkovich). Rachel e Laura partilham este medo profundo de se darem ao mundo. Ao mesmo tempo, preservam uma ingenuidade – uma pureza, pode-se dizer – que é bela, mas que também as sujeita a uma vulnerabilidade perigosa num mundo cheio de cavalos e com tão poucos unicórnios. A delicadeza destas personagens femininas é correspondida pela realização de Newman, sempre remetida a um lugar de sóbrio respeito pela vida (interior/exterior) das suas personagens.
Há sempre um ângulo qualquer mediante o qual a câmara de Newman humaniza as suas personagens.
The Glass Menagerie é a adaptação de uma peça de Tennessee Williams, ele que marcou a carreira do Newman actor, nomeadamente nos dois magníficos filmes de chambre realizados por Richard Brooks que traduzem em imagens dois textos magníficos do dramaturgo norte-americano, Cat on a Hot Tin Roof (Gata em Telhado de Zinco Quente, 1958) e Sweet Bird of Youth (Corações na Penumbra, 1962). A própria Woodward havia participado numa excelente adaptação ao cinema de uma peça de Tennessee Williams. Falo desse pungente filme de Sidney Lumet, protagonizado por Marlon Brando e Anna Magnani, chamado The Fugitive Kind (O Homem na Pele da Serpente, 1960). Por estes motivos, no que diz respeito ao texto propriamente dito, Newman e Woodward estão em casa. A mise en scène reflecte este à-vontade, na medida em que nunca ultrapassa, um milímetro que seja, a sua função de servir a coabitação dos seus três protagonistas, a quem se juntará uma quarta presença que irá trazer a mudança metaforizada pelo acidente com o unicórnio de vidro, das poucas coisas na vida que fazem brilhar os olhos da doce e só Laura.
Esta colecção translúcida e cintilante de animais quebradiços coloca em abismo o que se joga no palco desta casa em lenta ebulição. A mãe azucrina a cabeça do filho, porque este não cuida da irmã como deve ser; porque este está sempre a sair à noite, procurando aventuras no cinema que o fazem esquecer da sua entediante vida como trabalhador num armazém; porque ele está cada vez mais parecido com o seu pai, o grande ausente nesta história que, por causa do alcoolismo – o flagelo, mas desta feita “de mãe”, de Woodward em The Effect of Gamma Rays… -, é parcialmente responsável pela disfunção que aflige esta família. Tom precisa de se libertar desta vida – romper de vez com o cordão umbilical -, mas também não sabe como, nem quando. A vinda do seu amigo Jim O’Connor, para um jantar caseiro que tem como objectivo encontrar o par certo para a sua irmã, será o momento em que tudo estilhaça. A peça de vidro e a resistência de Tom às queixas e reparos da sua mãe.
Woodward parece uma versão antiética da mãe desleixada que interpretou em The Effect of Gamma Rays…. O seu excesso de preocupação e proteccionismo sufocam o espaço dramático do filme. A sua ânsia em impor uma ideia de felicidade a cada um dos filhos torna perto de irrespirável o ambiente geral que se vive naquela casa. Mas há uma atenuante: afinal, essa é uma ânsia de uma mãe sofredora. Há sempre um ângulo mediante o qual a câmara de Newman humaniza as suas personagens. The Glass Menagerie é um filme triste, mas serenamente triste. Ao passo que os primeiros filmes de Newman – onde se conta também Sometimes a Great Notion (Os Indomáveis, 1970), o único dos seus filmes sem Woodward e, talvez, o mais duramente masculino – são convulsos e, por vezes, abismais. Aqui nada se resolve, nada se conserta completamente, nem mesmo o corno do unicórnio, ainda assim, a peripécia do jantar abre uma brecha por onde passa um pequeno fio de luz. Nada ficará na mesma, o que já é alguma coisa. É preciso que algo se parta para haver alguém que repare – no duplo sentido da palavra. O menagerie familiar revela-se assim um espaço de uma raríssima e, portanto, preciosíssima beleza humana. Não haja dúvidas: urge redescobrir Paul Newman, o realizador.