Um título em português dado a um popular filme americano assenta que nem uma luva no que é proposto pela premissa deste The Lobster: o amor é um lugar estranho. Visão alegórica, distopia em jeito de fábula que sabe tanto a Kafka, La Fontaine quanto a Lars von Trier e Stanley Kubrick, The Lobster situa-nos num tempo – e num lugar – onde quem não tem par é remetido a um exílio forçado num hotel luxuoso, que apenas oferece os seus serviços até ao momento em que cada hóspede consiga encontrar, de novo ou pela primeira vez, a sua “cara metade”. Caso isso não aconteça em 45 dias, o infeliz “encalhado” é transformado num animal à sua escolha. O mais recente filme do grego Yorgos Lanthimos, que aqui se estreia no território da língua inglesa com um cast de estrelas (Colin Farrell, Léa Seydoux, Rachel Weisz, John C. Reilly), propunha problematizar não o lugar dos nossos amores frustrados, arrebatados ou adormecidos. Não, a sua ambição – muitíssimo desafiante – era falar desse estranho lugar onde simplesmente o amor não se cumpre. Era o retrato muito actual sobre o espaço de discriminação e intolerância onde circula – e habita – quem não encontra correspondência amorosa.
Não saber amar ou não ter a arte e engenho para ser amado. Algures por aqui caberiam tantas inquietações que atravessam a dessensibilizada e “programática” sociedade contemporânea. Homem e mulher, homem e homem, mulher e mulher. Esta sociedade não só convida os seus cidadãos a se juntarem como, na realidade, torna compulsório que o façam, a bem da sanidade geral. De novo, no papel, Lanthimos volta a tocar na ferida, quanto ao modus como lidamos com os afectos, cerca de seis anos depois do desconcertante Kynodontas (Canino, 2009). Qual o problema da passagem do papel às imagens? À medida que o filme se desenrola, Lanthimos vai-se distanciado dessa proposta – efectivamente política – de reactualizar numa fábula contemporânea a forma como lidamos com esse monstro chamado “sentimentos”. O discurso sobre afectos vira afectação estilística. As suas personagens-autómatos carecem de densidade – dramática e corpórea – para que nos sintamos com elas e, muito importante, como elas. O lugar estranho dali não comunica com este lugar estranho em que vivemos – não seria portentoso chegarmos à conclusão, no fim da sessão, de que também nós, neste lado da vida, somos intervenientes de uma fábula distópica algures entre Kafka, La Fontaine, Lars von Trier e Stanley Kubrick?
A frieza do contrato sentimental jogado no filme é, afinal, a frieza auto-indulgente do contrato que Lanthimos propõe ao espectador que assine.
As ideias acumulam-se e Lanthimos não se desembaraça da sua vaidade formal e estilística. Ele sufoca o seu lugar estranho de adornos – de jogos visuais e precipitações na narrativa – que nos afastam, afastam e afastam. O universo do filme torna-se demasiado grotesco para nos acabarmos a sentir parte dele. Pouca ou nenhuma é a hospitalidade deste “lugar estranho”. É certo: já Kynodontas e Alpeis (2011) eram filmes sobre jogos frios em que era perto de impraticável qualquer forma calorosa de contacto humano. Essa impossibilidade de amar transforma-se assim no principal objecto – entenda-se, num objecto óbvio – em The Lobster. Lanthimos não saiu do seu habitat, mas – já acontecia isso em Alpeis – o seu act, dramático, formal e até linguístico, torna-se numa exibição pedante de cinismo intelectual. Lanthimos gosta – e gosta que nós gostemos disso – que o seu mundo seja um pequeno teatro de aberrações sentimentais e de jogos frios, calculados e desesperançados.
Tudo isto elevado por música clássica e “quadros vivos” estilisticamente enfatuados que utilizam um “foco universal” kubrickiano como quem diz: “não tenho nada a esconder”. É a religião do cinismo que acaba grotescamente cúmplice daquilo que o filme parecia, à partida, condenar: a forma como se politizaram as questões do coração na sociedade em que vivemos. A frieza do contrato sentimental jogado no filme é, afinal, a frieza auto-indulgente do contrato que Lanthimos propõe ao espectador que assine. Para haver comprometimento é preciso haver pessoas do outro lado. Mas estas não existem no universo de Lanthimos, qual formicarium devidamente isolado do mundo exterior, no qual o realizador-cientista observa – e, com isso, condiciona – as movimentações dos seus bichinhos. Não podemos temer pela transformação destas “pessoas” em animais, se estas têm tanta alma quanto um “bicho de laboratório”. Os exercícios estilísticos e teóricos de Lanthimos arriscam tornar-se nisso: vistoso cinema sem alma – e sem graça.
Uma nota, em jeito de post-scriptum, para essa coisa simplesmente incompreensível que é estarmos nós, espectadores, sujeitos nos últimos tempos a uma invasão súbita de filmes que fizeram parte do alinhamento de Cannes 2015. A palavra-chave que descreve os tempos em que vivemos é aceleração. Contudo, as distribuidoras empenham-se numa política desfasada com os nossos tempos quando programam filmes cujo buzz se deu há um ano ou mais. Muitos distribuidores encostam-se à velha retórica de culpar a pirataria ou a crise económica para a falta de espectadores nas salas de cinema. Estão tão acomodados a essa retórica que se esquecem de olhar para dentro ou fazer qualquer espécie de auto-crítica. Com isso, nem se apercebem de quão retrógrada é, tantas vezes, a sua estratégia de distribuição. The Lobster ganhou o Prémio do Júri em Cannes há um ano e poucos meses depois caiu na pirataria com óptima qualidade. Recentemente passou no IndieLisboa e já aí sabia a “yesterday news”. Cai agora – como um ovni – nas salas de cinema, parecendo-se mais com uma reposição do que com uma estreia (premiere). Os tempos modernos não se compaginam com estes ritmos de distribuição, com esta ausência total de timing. Por favor, acordem.