Deve ser mau sinal não ter nada de novo para dizer, mas não deixa de acontecer. Leio o que escrevi neste estabelecimento a propósito de Jeune & jolie (Jovem e Bela, 2013) de Ozon, estreado há cerca de dois anos, e quase que poderia trasladar a maioria das frases para este texto que ninguém notaria que foram escritas originalmente para esse outro filme. Feito o aviso, ataco. As seguintes considerações aplicam-se sem adulterações ao agora (tardiamente) estreado filme de Ozon Une nouvelle amie (Uma Nova Amiga, 2014).
(1) “sentimos o prazer da caça, desse jogo de encontrar e guardar imagens, imagens dos outros, imagens que não queremos esquecer – clarões rápidos de carne, de partes de corpos, de gestos e expressões”, (2) “o que mais incomoda, a sensação de que a linha narrativa que o realizador toma é uma segura, sem lampejos de originalidade ou surpresas para o espectador [há certamente quem ache que isso é o melhor do filme, já que aqui Ozon não se põe a brincar aos filmes e opera toda a sua maquinaria clássica – e bem oleada – sem grandes demonstrações de virtuosismo]”, (3) “em Ozon o que mais me interessa é essa opção de trabalhar muitas vezes dentro dos géneros e dos formatos estabelecidos, conseguindo mesmo assim enchê-los de uma estranheza inesperada. Aqui isso também acontece, não tanto pelo género ou formato, mas pelo tom: qualquer realizador filmaria uma história de prostituição juvenil [leia-se, uma história de luto e transexualidade] com um peso que a Ozon pouco importa” e por fim (4) “é nesse choque de expectativas que o Ozon vem (de filme para filme) deixando a sua marca de tarefeiro inconformado”. Se é falha minha não acrescentar pensamento novo, resulta necessariamente da continuidade formal e narrativa que os filmes de Ozon vêm tomando – sinal de autoria, e sinal de estagnação – que aqui ganha contornos particularmente inteligentes pela forma como elide uma resolução explícita por se sustentar no modelo do happy ending e no clímax choroso do melodrama (a forma toma conta e embalados pelos clichés caminhamos para o the end).
Posto isto, e porque nestes últimos tempos a minha relação com as imagens se vem impondo à relação com as palavras, proponho um olhar sobre três soluções visuais em Une nouvelle amie. Sendo esta uma história de luto e da descoberta e afirmação da identidade de género na seguimento dessa perda, é um filme que trabalha essencialmente sobre dois esquemas visuais: repetição e transmissão. Ou seja, por um lado há a questão da perda e o filme elabora sobre a memória através da repetição de momentos singulares da infância, regressos a espaços antigos e preenchidos de recordações, repetição de gestos e situações. Por outro lado, e exactamente por causa da perda e da forma como o luto promove o surgimento de Virgínia, essa repetições pautam-se pela variação, imposta pela condicionantes do presente. Assim, repare-se na forma como o filme representa a pintura dos lábios: primeiro a pintura de uns lábios indefinidos (que viremos a saber serem da recém falecida amiga pelo seu esposo), depois a pintura dos próprios lábios (ainda de forma canhestra), a confirmação do gesto e o seu apuramento, a transmissão à amiga e por fim e a repetição do plano inicial, agora invertido, a amiga que pinta os lábios de Virgínia quando este está em estado comatoso [cinco momentos presentes na composição abaixo].
Este esquema da repetição e transmissão é um que se propaga por todo o filme como forma de ligar a amizade (latentemente sexual) original com a “nova amizade” já sexualizada (de forma provocadora, numa estratégia de substituição da paixão nunca consumada da relação original). Assim, o baloiço de infância activa-se de novo em posições inversas, os encontros nocturnos fazem-se com orientações opostas, o cabelo vira peruca fugidia, a traição vira desejo, a verdura torna-se pastel [composição abaixo].
Mas talvez o momento mais ousado da realização ziguezagueante de Ozon entre passado e presente se faça aquando do regresso à casa de férias no campo. Somos introduzidos ao passado por um flashback vindo dos olhos perdidos no tempo da protagonista e vemos a imagem idílica da amiga, de vestidinho e fundo campestre. A câmara inicia uma travelling atrás que nos faz descobrir que a amiga pousa para um pintor, recua mais ainda e revela a espectadora da situação. Entretanto, há uma variação de foco e a espectadora da cena olha para a câmara (para nós) fazendo raccord com os olhos que recordavam a situação e que se transmutam em olhos que observam o quadro, em exposição na referida casa de campo. Ou seja, num plano só Ozon dá-nos o real, a sua fixação (que implica uma metaformofese da memória desse real), o espectador que recorda e o espectador que assiste à memória de outro feita cinema, e por fim, o resultado dessa fixação, já encharcada nas memórias emocionais (e emocionadas) de quem a recordou.
É em soluções destas que Ozon mostra como é, de facto, um dos poucos cineastas contemporâneos com total domínio sobre as formas clássicas da mise en scène. E só por isso se desculpa o lado delicodoce desta fábula que olha a questão trans do alto de uma alta-burguesia, onde todos os problemas de integração social são reduzidos ao comprimento da saia, qual dona de casa desesperada no aborrecimento do seu lar luxuoso. [Para uma perspectiva diametralmente oposta, a RTP2 exibiu a semana passada, no dia mundial de luta contra a homofobia e a transfobia, o documentário Julia (2013), é só viajar nos últimos sete dias da box…].