A Civic TV vai continuar no IndieLisboa. Continua no festival para lá do festival. Como? Através dessa muito interessante parceria que o IndieLisboa tem mantido com os canais TVCine. Através deles, o festival pode ser acompanhado e até estendido para lá da sua duração. É um conforto especial quer para o cinéfilo hiperactivo, que tentou ver tudo, mas que – como sempre – acabou com uns quantos títulos que ficaram por ver, quer para o cinéfilo preguiçoso, que se contenta em ver uma selecção sobre a selecção que o festival já é. Confiando nas escolhas dos canais TVCine, que recaem normalmente sobre filmes premiados do festival, podemos encontrar uma pequena amostragem do que de melhor passou por esta – como por anteriores – edições do certame. Mas não é só a TVCine que permite “continuar o IndieLisboa para lá dele mesmo”. A RTP2 olhou com especial atenção para uma das atracções principais do festival: a primeira exibição pós-Urso de Ouro em Berlim de Balada de um Batráquio (2015) de Leonor Teles. O programa de curtas RTP Cinemax Curtas convidou a cineasta para falar um pouco sobre o seu premiado filme e, mais especial ainda, para apresentar o seu primeiríssimo filme, Rhoma Acans (2012). Através da TVCine e da RTP2 estabeleceu-se uma rede de continuidade com a actualidade festivaleira do momento. Com isso, propiciaram-se interessantes descobertas.

A primeira descoberta pós-Indie, imagine-se!, foi um dos seus heróis independentes deste ano, que, lamentavelmente, passou despercebido dada a dimensão do outro herói, que foi o tema principal da passada crónica. Falo de Vincent Macaigne, rosto novo do cinema francês que parece nascer de um cruzamento inesperado entre um actor burlesco do mudo – um Keaton, um Fatty Arbuckle, um Langdon, um Lloyd? – e o Depardieu dos amores intensos e desesperados. Falo, especialmente, do Depardieu de La femme d’à côté (A Mulher do Lado, 1981). Como uma personagem burlesca – Lloyd e Langdon acima de todos -, ele gera tanta compaixão junto do sexo feminino quanto tende, tragicamente, para a paixão auto e hetero-destrutiva. Ele é uma personagem trágica, do “amor trágico”, e a tragédia, como se sabe, é o melhor alimento para a comédia, para o patético. Morrer e matar por amor, fórmula do romantismo, muito francesa, que molda o pathos – o patético dramático e clownesco – de Macaigne. Ele desperta o nosso comprazimento depressivo. Uma das etapas da depressão passa pela entrada num labirinto, de que dificilmente saímos, em que o sofrimento se torna motivo íntimo, secreto, “irracional”, de prazer. Macaigne personifica este nosso desejo: queremos que ele sofra, queremos sofrer com ele, porque ele sabe sofrer. Há uma arte do sofrimento na sua persona martirizada pelas suas ilusões quanto aos assuntos do coração. Não há cura para o mal au coeur que aflige este homem patético.
O TVCine 2 passou Une histoire américaine (2015), de Armel Hostiou, mas podia ter passado Tonnerre (2013), Un monde sans femmes (2011), Le naufragé (2009), os três de Guillaume Brac – a colaboração cinematográfica mais sólida no currículo de Macaigne –, ou qualquer outro dos seus filmes que passaram no IndieLisboa. Qualquer um deles é marcado pelo seu rosto, pela curvatura particular de um corpo simultaneamente pesado e ágil (a felicidade também se conta assim), pelos seus escassos cabelos longos, poucos e muitos (a felicidade também se conta assim), pela sua voz tímida e dolorida (de novo, a felicidade…), pelas suas lágrimas sonoras e pelos seus actos bruscos, irreflectidos (ai, a felicidade…). Os seus filmes são realizados por amigos: Guillaume Brac, Louis Garrel, Sébastien Betbeder, Armel Hostiou, etc. São estes os realizadores, mas os filmes são dele, Macaigne. Ele é o símbolo da mais recente “política dos actores” do cinema francês. Já havia descrito o significado desta ideia, nomeadamente na minha crónica sobre Steven Seagal: “muitos actores tentam encontrar argumentos com os quais eles consigam trabalhar, Seagal parece ter argumentos que nascem de si”. Pode-se dizer o mesmo sobre Macaigne? Sem dúvida. Tanto assim que, como observa o colega Francisco Noronha no excelente texto que lhe dedicou no âmbito da sua cobertura ao IndieLisboa, por vezes o nome da personagem coincide com o seu primeiro nome. Vincent atrás da câmara, Vincent à frente da câmara. Se o filme aparece com Vincent Macaigne, ele normalmente falará de amores frustrados, amores obsessivos, amores massacrados e massacrantes. Mas também nos rimos. O sofrimento de Macaigne é vibrante, feérico, quase anacrónico por se basear nessa crença de que as paixões são para ser vividas até ao limite da existência, entrando, se for caso disso, no domínio da pura fantasia.
Rhoma Acans não terá ganho o “big prize” de Berlim, mas é por isso que deve permanecer omisso nas nossas salas? Eu diria que Balada de um Batráquio precisa mais de Rhoma Acans que o contrário.
A sua obsessão amorosa vale uma citação cinéfila num dos filmes que protagoniza – e que enforma -, 2 automnes 3 hivers (2013). No apartamento da personagem de Macaigne, vemos o cartaz de um filme: Quatre nuits d’un rêveur (As Quatro Noites de um Sonhador, 1971). “Vi um filme de Bresson”, olha Macaigne para a parede com o cartaz, “e lembrei-me de ti”. Ele fala com uma mulher – o seu último “amor da vida” – mas está a falar de si para si, claramente. Nesse angustiante retrato de um amor conjurado por uma decisão de morte, o protagonista “sonhador” de Bresson apaixona-se tão perdidamente que, a certa altura, da sua boca só sai o nome do objecto do seu amor. Ele diz o nome dela repetidamente. Grava para ouvir depois, mais umas quantas vezes. “Marthe, Marthe, Marthe, Mathe, Marthe…”. Marta multplicada, nessa convulsão, ao ponto de parecer que este sonhador pretende lançar uma praga ao invés de cantar um amor. Marta multiplicada soa a Marte, o Deus romano da guerra. Sim, é isso: em Bresson como em Macaigne, o amor é um combate permanente. Une histoire américaine fala sobre isso, acima de tudo, mas aqui o combate começa – e daí não conseguirá sair – com o KO do nosso protagonista.
Em Une histoire américaine, Vincent Macaigne é Vincent, um homem que parte para Nova Iorque não à procura do sonho americano, mas de quem está convencido ser – e se está convencido como pode não o ser? – o amor da sua vida. Mas ela não quer nada com ele. Vincent é um capítulo encerrado na sua vida. Pelo contrário, ela não é um capítulo encerrado na vida dele. Vincent não desiste de a procurar e de tentar, de novo, conquistar-lhe o coração. Tudo em vão… O amor transforma-se em depressão. Vincent cai num abismo e é aí que “o patético” enternecedor e doce se converte numa sombria viagem ao lado escuro do amor. Macaigne não deixa de combater mesmo quando a guerra está manifesta e irremediavelmente perdida. Ele é uma causa perdida. E nós com(o) ele.

Noutro canto do espectro televisivo, Rhoma Acans foi exibido no programa da RTP2 Cinemax Curtas, que se tem revelado um espaço precioso na divulgação do novíssimo cinema português. Esta exibição aconteceu na véspera da estreia – após passagem pelo IndieLisboa – de Balada de um Batráquio nas salas de cinema, como complemento do novo filme de Richard Linklater, Everybody Wants Some!! (Todos Querem o Mesmo, 2016). Em estúdio, o apresentador do programa Tiago Alves conduziu, em estilo discreto e amável, uma conversa com Leonor Teles que andou à volta dos seus filmes e da sua sensacional ascensão pós-Berlim.
Rhoma Acans havia tido uma passagem surpreendente na competição nacional do IndieLisboa, mesmo sendo um filme de escola com apenas 12 minutos. Arriscaria dizer, desde já, que a febre pelos prémios pode gerar situações curiosas. Desde logo, uma desproporção, a meu ver, fundamentalmente injusta entre a visibilidade dada a duas obras feitas consecutivamente pela mesma realizadora. Rhoma Acans não terá ganho o “big prize” de Berlim, mas é por isso que deve permanecer omisso nas nossas salas? Eu diria que Balada de um Batráquio precisa mais de Rhoma Acans que o contrário. Paradoxalmente ou não, o primeiro filme de Leonor Teles é mais revelador que o seu segundo. Revelador, primeiro, da relação íntima da cineasta com as suas raízes ciganas e, segundo, da própria comunidade – em particular, enquanto incursão na vida da jovem Joaquina – dentro da qual ela exercita a questão: “e se o meu pai não tivesse quebrado a tradição onde nasceu e fizesse agora parte desta comunidade? Será Joaquina a manifestação mais perfeita desse ‘se’ para mim, o ‘eu’ que projecta essa possibilidade de um futuro que, por um triz, não se concretizou?”.
Na sua crítica ao filme, Luís Miguel Oliveira sublinha que o mérito de Balada de um Batráquio prende-se com o facto de “não dizer nada sobre os ciganos, mas dizer muito sobre a aversão e o medo que deles se tem, ao filmar o falhanço da ‘maldição do sapo’ no momento em que ela é escaqueirada”. Na minha opinião, falta exactamente isso ao filme: dizer algo – de mais profundo – sobre a comunidade cigana. Não basta partir os sapos, é preciso mergulhar nas particularidades de uma comunidade que vive connosco, completa ou parcialmente integrada na nossa cultura – não diria que urge “humanizar os ciganos”, mas é fundamental mostrá-los, compreendê-los, antes de “estilhaçar preconceitos”. Não se faz isso nos escassos 11 minutos de Balada de um Batráquio, mas faz-se isso nos luminosos 12 minutos de Rhoma Acans, que nos fazem olhar para dentro e para fora, compreendendo (também no sentido inglês do termo, to comprehend) o “eu” da jovem cineasta e o “eu” de Joaquina, no qual o primeiro se projecta. No belíssimo plano final, vemos Leonor Teles tentando acompanhar o passo de Joaquina enquanto esta dança, graciosa e altivamente, ao som de uma música cigana. A primeira procura acompanhar o ritmo da segunda – o filme, e duas vidas, em apenas uma imagem. Enfim, o aturdimento mediático provocado pelo prémio, que tem pouco que ver com fruição cinéfila – quantas pessoas partilharam nas redes sociais a notícia do prémio e fizeram o mesmo celebrando a qualidade do filme? -, não foi suficiente para se dar a (re)descobrir em sala “o filme anterior”. Contudo, é sobretudo nele que eu encontro uma cineasta para o futuro.