A segunda edição do Festival de Cinema Argentino – AR começa no próximo dia 29 de Junho e termina no dia 3 de Julho. Decorrerá durante estes quatro dias, oferecendo algum do melhor cinema argentino produzido no passado ano. Uma selecção de filmes premiados nalguns dos principais festivais de cinema (Cannes, Berlim, Locarno, San Sebastian, Roterdão e Sundance) vai, assim, invadir o Cinema São Jorge, propondo ao público português a descoberta de um dos cinemas mais adultos e desafiantes no actual panorama cinematográfico. Destaco, neste texto, alguns dos principais pontos da programação.
Esta segunda selecção apresenta um naipe ainda mais interessante que a primeira edição. Este aumento de consistência advém essencialmente de três longas-metragens muito diferentes entre si, ainda que tenham em comum o mesmo olhar franco e directo sobre a vida: El incendio (2015) vai consumindo o corpo e a alma de um casal em vias de dar um passo importante na sua vida – compra e mudança de casa. Este filme dialoga com a violência surda de Paula (2015), uma jovem mulher que enfrenta o drama de não conseguir financiar um aborto que tem por urgente.
Mais serenos e elegíacos são os 327 Cuadernos (2015) de Ricardo Piglia. Folheando-os, a câmara de Andrés de Tella dá-nos a conhecer, simultaneamente, a vida do famoso escritor argentino e a recente história do país de Perón. De um lado, o homem e as suas memórias; do outro lado, com ele e por vezes contra ele, o processo histórico de um país convulso no qual nem sempre encontrou uma “casa”. Este é, sem reservas, um dos filmes mais belos deste AR. No entanto, qualquer um destes três filmes justificam uma ida ao São Jorge. Mas recuemos um pouco.
El incendio tem o condão de enviar o espectador para o meio de um incêndio que vai lavrando lentamente a vida interior de um jovem casal. Quando a coabitação implode, somos já o terceiro elemento nesta casa, morada em vias de ser preterida por uma outra. Procura-se aqui, contudo, mais um espaço afectivo do que propriamente um espaço físico. Sentimos, fatalmente, que as cenas constituem um ponto de não retorno para estas duas pessoas que ainda desejam ardentemente “mudar” de vida. Paula é um filme mais próximo do universo de Lucrecia Martel e de um cinema de preocupações sociológicas e políticas. Há sempre uma barreira comunicacional – de classe – entre a ama e a família rica para quem trabalha. Mas Paula sofre com a possibilidade de o filho que traz no ventre poder ser a sua última condenação – moral, sentimental, financeira? Tudo ao mesmo tempo. O drama aqui é um drama do dinheiro, também. O mesmo acontece em El incendio – a “plata” é o pretexto para a guerra que se desencadeia entre os dois membros do casal.
Menos interessante, mas muito aplaudido em Cannes pela crítica – ganhou mesmo um prémio FIPRESCI -, Paulina (2015) rima, de facto, com Paula nesse ponto: nos dois dá-se uma batalha moral, sentimental e “de classe” entre uma mulher e um objectivo de vida. Claro que aqui – por esta ter posses – a questão da urgência social do “aborto” é totalmente diferente. A advogada de sucesso Paulina torna-se numa professora de colégio para, deste modo, seguir o seu sonho de fazer algo útil pela comunidade, numa missão de apoio aos mais carenciados. Isto apesar da forte oposição do seu pai, um prestigiado e muito rico advogado. Paulina acabará violada por um gangue de rufias, sendo que alguns deles são seus alunos, o que a coloca entre a espada e a parede no que diz respeito ao seu futuro: deve ela insistir nessa sua via “activista”/filantrópica” ou regressar à zona de conforto “de classe”? A dúvida de Paulina é igual à de Paula num ponto: como encarar a possibilidade de vir a ter um filho indesejado?
O activismo de Paulina tem pouco que ver com a urgência muito prática que move Paula, mas – mesmo que em pontos diametralmente opostos da escada social – as duas mulheres lutam e é essa luta que transforma os dois filmes em experiências exigentes – até certo ponto esgotantes – para o espectador. Por que razão Paula é mais interessante que Paulina? A proposta dessa luta, da mulher consigo, com o seu corpo e o corpo social que a envolve – e cerca -, é mais eloquentemente trabalhada do ponto de vista formal no primeiro que no segundo filmes. A angústia em Paula é uma angústia que nos é comunicada pelo isolamento no quadro da figura desta ama desamparada, ao passo que em Paulina o dispositivo dramático é mais convencional e, em alguns instantes, demasiado denunciado na sua intensa retórica.
Uma marca de um certo cinema argentino: a tensão que vai cozendo em lume brando a vida – normalmente em estado de, outrossim, progressivo isolamento – das personagens. Pois bem, em Mi amiga del parque (2015) essa tensão rebenta numa forma de pânico permanente. O filme explora, até à exaustão, a ameaça iminente de rapto do bebé na cabeça da mãe. O filme é minimamente engenhoso quando faz de nós “reféns” dessa possibilidade ao longo da maior parte da sua duração, mas o que resta deste drama senão apenas a sensação algo histérica de cativeiro, um incessante “pôr em desconfiança” de cada elemento da narrativa? Apreende-se rapidamente a fórmula quase thrillesca que sustenta Mi amiga del parque, impedindo que possamos entrar em pleno, sem as nossas próprias desconfianças, na história desta mamã hesitante, em permanentes apuros.
Mais filmes preenchem o cardápio desta segunda edição do AR. Consulte o programa completo aqui.