Fechamos o acompanhamento do FEST – Festival Novos Realizadores | Novo Cinema com o texto (aqui numa versão mais extensa) de Francisco Noronha escrito para o jornal do festival sobre Granny’s Dancing on the Table (2015), de Hanna Sköld. O festival prossegue com os seus workshops e masterclasses de nomes importantes do meio cinematográfico mundial, aguardando-se com muito expectativa pelas presenças de Manuel Mozos (25 de Junho) e, claro, do realizador húngaro Béla Tarr (também a 25 de Junho). Os prémios do certamente serão anunciados no dia 27 de Junho.
Granny’s Dancing on the Table (2015), de Hanna Sköld (Competição Lince de Ouro, Longa-Metragem de Ficção) | Exibido dia 21 de junho, 21h00
O dispositivo montado para narrar a história de uma família sueca e, em particular, de Eini, uma menina tiranizada por um pai ultra-conservador e violento, é um dos maiores trunfos da segunda longa-metragem da realizadora sueca, exibida na edição de 2015 do Festival Internacional de Cinema de Toronto. Recorrendo a uma montagem paralela (se bem que nunca desarmoniosa no resultado final), Sköld alterna entre a narração da acção no presente em live action, com o foco na relação entre Eini e o pai (cujo anonimato sublinha o distanciamento, a frieza e a sua autoridade ditatorial) numa casa na floresta absolutamente isolada da civilização, e o racconto (em off, pela voz de Eini), com recurso a claymation (uma das vertentes de animação stop motion), sobre as origens daquela família e de como o tempo e os acontecimentos se foram desenrolando (e viciando) até ao presente.
E a primeira questão a colocar é precisamente sobre essa opção estética pela claymation: porquê filmar assim o passado desta família? Contra a ideia, que uma leitura apressada induziria, de que seria uma forma de suavizar, de alguma forma, o negrume da história, importa desde logo esclarecer que não é por ele (negrume) ser filmado em animação que “custa menos” a ver ao espectador; precisamente pelo contrário, mesmo com imagens “a brincar”, mesmo com figuras não-humanas, a atmosfera é tanto ou mesmo mais perturbadora do que seria se filmada em live action [efeito semelhante conseguido por Rithy Panh em L’image manquante (A Imagem Que Falta, 2013)]. E será que a claymation corresponderá à imagem mental (e infantilizada, em virtude da idade) que Eini projecta dos acontecimentos narrados pelas cartas da Avó? Como quer que seja, o certo é que a opção tomada por Sköld resulta plenamente, criando uma espécie de conto infantil (ainda que de algum “terror”) poético e revelador, nas entrelinhas, de algumas “morais da história” (desde logo, sobre a dignidade da mulher), na melhor tradição literária do conto.
Sóbria e minimalista, e beneficiando de uma excelente direcção de fotografia, Sköld sabe tirar proveito da extraordinária actriz principal (Blanca Engström) que interpreta Eini, menina-adolescente que, tendo crescido num opressivo regime de clausura imposto pelo pai, tem na Avó – e, simbolicamente, nesse acto tão insubmisso e libertário que é o de dançar –, através das suas cartas que o pai escondeu, a “luz ao fundo do túnel”, a referência quase mítica de resistência e, sobretudo, da possibilidade de uma existência alternativa e, forçosamente, mais feliz (ou feliz, simplesmente). Nesse périplo interior e furtivo de Eini pela liberdade individual (contrabalançado, porém, pelo receio da mudança e do desligamento do pai), a extrema violência (física e psicológica), especialmente sobre as mulheres, que perpassa as relações familiares empresta um tom inegavelmente sombrio ao filme, de que as visões “sangrentas” de Eini são exemplo.
Embora seja declarado o juízo moral negativo sobre a figura do pai, o filme não deixa de ilustrar como o tempo e as circunstâncias da vida podem ser determinantes na formação (e embrutecimento), muitas vezes involuntária e até indesejadamente, das personalidades dos indivíduos, ao mesmo tempo que questiona criticamente o papel da família enquanto célula perpetuadora de estigmas, traumas, preconceitos e castrações (a sexualidade, a menstruação, a comunicação com o mundo exterior, etc.), a esse título se fazendo sentir os ecos “protestantes”, religiosamente falando, de um filme como O Laço Branco de Michael Haneke.
O final do filme, declaradamente aberto, coloca-nos, obviamente que noutros termos, perante o mesmo derradeiro dilema de Ingrid Bergman em Stromboli: Eini continuará ou voltará para trás? Diríamos apenas – e dizemos tudo – que o modo como a última parte do filme e, em especial, o último plano são filmados é ilustrativo da confiança – e o que depositamos numa pessoa quando nela confiamos senão a liberdade e o respeito pela sua autonomia? – que Sköld deposita na personagem e na sua força de espírito. Rimando com o filme, diríamos que, onde há fumo… há mesmo fogo.