Diante de Finding Dory (À Procura de Dory, 2016) sinto-me tentando a mergulhar-me nas águas turvas da Teoria do Cinema e, mais que isso, na problemática questão da Teoria dos Géneros fílmicos. Isto porque me parece ser prática corrente do estúdio afilhado da Disney, a Pixar, trabalhar sobre a ideia de género e fazer dos seus filmes muitas vezes homenagens ao títulos que preenchem essas categorias. Assim, e porque não resisto a fazê-lo, passo a transcrever uma passagem um tanto longa do livro Teorias do Cinema de Andrew Tudor – um ensaio com já uns cinquenta anos editado pela Edições 70 em que o autor tem o dom de cascar em todo o pensamento sobre cinema posterior a Eisenstein; Bazin, Krackauer, Grierson, Truffaut e demais apanham por tabela da lógica férrea de Tudor. Lei-se então:
“Quase todos os escritores que utilizam os termo genre estão metidos num dilema. Estão a definir um western baseando-se na análise de um conjunto de filmes que não podem de forma alguma ser considerados westerns antes da análise. Se os temas e as convenções (…) são as características definidoras do western, então isto é um caso já discutido de definição arbitrária — a categoria torna-se redundante. Mas chega-se a estes temas e a estas convenções analisando filmes já diferenciados de outros filmes em virtude de serem westerns. Pegar num genre como o western, analisá-lo e listar as suas características é supor que temos de isolar o conjunto de filmes que são westerns. Mas eles só podem ser isolados com base nas ‘características principais’ que só podem ser descobertas a partir dos próprios filmes depois de terem sido isolados. Isto é, somos apanhados num círculo que exige primeiro que os filmes sejam isolados, para o que é necessário um critério, mas por sua vez supõe-se que o critério deve emergir das características comuns dos filmes estabelecidos empiricamente. Este ‘dilema empírico’ tem duas soluções. Uma é classificar os filmes segundo critérios escolhidos a priori dependendo das finalidades críticas. Isto leva de novo à posição anterior em que o genre especial é redundante. A segunda é apoiar-se num consenso cultural sobre aquilo que constitui um western e depois analisá-lo detalhadamente. (…) Por outras palavras, os factos cruciais que distinguem um genre não são só características intrínsecas aos próprios filmes; dependem também da cultura particular na qual estamos a operar.”
E depois acrescenta:
“A forma em que o termo genre é aplicado pode muito provavelmente variar de caso para caso. As noções de genre não são classificações do crítico feitas com finalidades especiais; são conjuntos de convenções culturais. Genre é aquilo que nós acreditamos colectivamente que é. (…) Até termos uma noção clara, ainda que especulativa, das conotações de uma classe de genre é difícil ver como o crítico, já rodeado de imponderáveis, podia utilizar utilmente o termo, certamente não como termo especial na raiz da sua análise. (….) Isto não é para sugerir que os termos de genre são completamente inúteis. Sugere apenas que o facto de os empregar exige uma compreensão muito mais metódica do funcionamento do cinema. E por sua vez isto exige que especifiquemos um conjunto de pressupostos contextuais psicológicos e sociológicos e que construamos modelos explícitos de genre dento deles.”
Sirvo-me destas palavras para não mais ter que pensar nelas, ou melhor, transcrevo-as para nelas lavar as mãos da utilização mais ou menos indiscriminada do termo género fílmico que referirei sem pejo nas seguintes linhas deste texto (acredito na opção do género como construção social feita da necessidade dos espectadores e da publicidade que lhes leva os filmes de criar categorias que esquematizam a produção cinematográfica e que têm o efeito inverso de constringir a própria produção em redor dessas fórmulas por todos detestadas – e secretamente amadas – que são o cliché e o lugar comum).
Finding Dory é um filme que ponto por ponto ultrapassa (ou torneia) os enclaves dos odiados – e amados – lugares comuns e clichés que compõem os géneros fílmicos.
Retomando então uma das minhas primeiras afirmações: os filmes da Pixar trabalham proximamente com os géneros clássicos em exercícios de homenagem. Duvidam? Veja-se a abertura de Toy Story 3 (2010) por entre os desfiladeiros vermelhos que Ford amava e pelas linhas de comboio, pelos pistoleiros e pelas donzelas em perigo para esclarecer qualquer dúvida (mas qualquer outro filme se poderia escolher a título de exemplo). Aliás, nessa cena o território do western vê-se invadido por aliens conduzindo o carro da Barbie, cães-mola magnéticos, dinossauros e naves-porco voadoras no que se compreenderá tratar-se de uma brincadeira infantil onde todos os universos televisivos e cinematográficos, nos quais (e dos quais) os próprios bonecos estão integrados, se mesclam numa constante oposição entre honrados e malvados. Coisa que de certo modo mimetiza os jogos que os cineastas clássicos de Hollywood deviam organizar onde selecionavam os ingredientes do menu narrativo e montavam mesclas sempre reflexas dos estilos das casas produtoras e ainda assim suficientemente diferentes para convocar o espectador mais uma vez à sala escura e suficientemente iguais para evidenciar o género e para que os meninos franceses mais tarde viessem a encontrar recorrências estilísticas ao longo da obra.
Mas não me posso, nem quero, afastar-me do que aqui me traz, Finding Dory. Pois bem, no filme de Angus MacLane e Andrew Stanton [a trindade do triangulo formado por Brad Bird e Pete Docter que têm realizado os melhores títulos da produtora, mas também fora da imagem animada, já que Stanton e Bird são responsáveis por dois daqueles que me parecem ser dos melhores títulos do cinema mainstream americano da última década: John Carter (2012) e Mission: Impossible – Ghost Protocol (2011) respectivamente] tem o road movie, como já o era o primeiro (na via-rápida das correntes do golfo), o slapstick (com uma sequência final de hilariantes gags encaixados que ocupam quase toda a metade final do filme), o drama thrillesco psicanalítico à la Hitchcock (com um trauma, uma mulher que regressa aos locais do passado e tenta recordar os eventos que a levaram até ali) e o puro filme de acção (menos o sistema actual da moderna narratologia popular que se organiza de nível em nível até ao boss final, e mais como um parque de diversões didático onde cada divertimento proporciona mais um desafio a ultrapassar e no final alcança-se o objectivo e a recebe-se a lição – no caso, pouco importam as nossas insuficiências porque são elas que nos motivam a ser mais fortes e é a forma como lidamos com elas que nos distingue).
Talvez o melhor do filme seja portanto esses momentos psicanalíticos em que Dory, a peixa com memória de curta duração, recorda um passado familiar no confronto com as ruínas da sua casa de infância e inversamente, a forma como os pais permanecem agarrados à memória de uma criança que nunca mais viram repetindo ao limite da sanidade os rituais do passado na esperança de uma regresso. Esses momentos de dolorosa consciência do intervalo de tempo que separou a família e das formas distinta como cada um dos elementos viveu e sentiu esse intervalo são os que mais se destacam (Dory quase indiferente à redescoberta que opera por algo não muito diferente de um capricho e os pais afundados num rito funerário que mal têm vontade de receber de novo a filha que quebra a mitologia por eles construída). A complexidade deste desenlace e o modo como tudo isto parece ter nascido do uma mera piada no primeiro Finding Nemo (À procura de Nemo, 2003) a propósito da “memória de peixe” tornam Finding Dory num filme que ponto por ponto ultrapassa (ou torneia) os enclaves dos odiados – e amados – lugares comuns e clichés que compõem os géneros fílmicos.