A RTP mudou. Esta é a feliz constatação que se pode fazer, desde logo, passando os olhos pela programação. Aqui, na Civic TV, temos dado conta destas mudanças, já que tem sido difícil não destacar uma opção de programação do canal quando me sento para escrever esta crónica. Tinha, portanto, de trazer para estas linhas os ciclos dedicados a Satyajit Ray e aquele, ainda em curso, sobre Heddy Honigmann. O ciclo do mestre indiano replicou o programa da distribuidora Leopardo Flmes que passou há pouco tempo pelas salas e que mereceu aqui, no À pala de Walsh, uma análise demorada do meu colega Carlos Natálio. O ciclo Heddy Honigmann, por sua vez, recupera os títulos da documentarista holandesa que foram editados numa caixa de DVDs da Midas Filmes. Não se trata, por isso, de um acto totalmente inesperado ou original de programação, mas há um aspecto que vem acrescentar valor a esta iniciativa: a rubrica “Já Vi Este Filme”, que contempla pequenas mas incisivas apresentações dos filmes por programadores, críticos, actores ou realizadores, serve para informar e educar, mas também para espicaçar a curiosidade do espectador para conhecer mais – e mais fundo – a obra do realizador em questão.
Já tinha dado conta nesta crónica do regresso dos pequenos intróitos de contextualização dos filmes. Aconteceu, pela primeira vez, com o ciclo Rossellini, que reeditava outra iniciativa Leopardo Filmes nas salas comerciais. A intenção de criar esta espécie de eco televisivo da programação de clássicos nas salas tem, obviamente, o efeito de fazer chegar a ainda mais cinéfilos um conjunto de filmes obrigatório. É preciso deixar um elogio a estes ciclos da Leopardo Filmes. Primeiro, porque têm tido um papel importante em produzir a descoberta e, nalguns casos, a reavaliação cinéfila de obras fundamentais. Segundo, porque, normalmente, não se reduzem às escolhas óbvias, incluindo no “pacote” algumas obras até então pouco vistas – ou, na realidade, nunca antes vistas – em território nacional. Gostava de me concentrar num desses casos. No ciclo Satyajit Ray apresentado, na sua íntegra, por José Manuel Costa, fui surpreendido pela descoberta de um filme menos celebrado do realizador bengali: Kapurush (O Cobarde, 1965).
Mais do que entrevistar propriamente, Honigmann permite-nos, pelo modo da sua presença, estar com as pessoas que filma.
Com uma duração pouco “ergonómica” do ponto de vista comercial (pouco mais de uma hora), este filme tem todos os condimentos do melhor melodrama. Pode ser acidental a leve parecença com o melodrama sirkiano There’s Always Tomorrow (A Vida Não Pára, 1956), mas também aqui temos o re-assombramento de um amor antigo – dentro da fórmula boy meets girl again – que vai lançar a dúvida sobre a vida dos nossos protagonistas. Esta ideia de dúvida é que alimenta a ambiguidade do título, bem salientada por José Manuel Costa na apresentação do filme. É que kapurush significa, em bengali, “cobardes” e não, como indica o título português, “o cobarde”. A importância do plural é decisiva para o desfecho do filme. Todo o filme se joga nesta questão de resolver o passado ou resolver o futuro. Como sabemos, a única maneira de redimir o passado passa por se corrigir o rumo das coisas no porvir. É isso que tenta o nosso “cobarde herói”, um argumentista que, depois de ficar apeado durante uma viagem, acaba na casa de um magnata e da sua mulher. Ela revela-se a mesma mulher com quem o argumentista, nos seus verdes anos, partilhou uma intensa história de amor. A culpa do rompimento vai constituir a principal barreira para esta totalmente imprevisível reaproximação. No meio, o marido alheado e gabarolas.
Ray filma, numa geometria formal precisa, o desequilíbrio emocional que liga, ainda que de modo precário, este homem a esta mulher – nem de propósito, interpretados pelos dois grandes actores do cinema de Ray, Soumitra Chatterjee e Madhabi Mukherjee. O filme nunca deixa de ser sentido – e a sua relativa curta duração contribui para isso – como um abrupto e desgostoso “desvio de percurso” na vida do seu protagonista. Adivinham-se catastróficos efeitos sentimentais como corolário do final seco que redime a cobardia – dele nela – mas que não resolve o amor adiado – dele por ela.
Desde o início deste mês, Satyajit Ray dá lugar a Heddy Honigmann, documentarista holandesa cujo percurso lembra, vagamente, o do compatriota Joris Ivens, por nele não se conhecerem fronteiras geográficas e culturais. Honigmann nasceu no Perú, mas a sua carreira no cinema tem tido sede na Holanda. Os seus filmes revelam uma mundividência larga, um prazer na descoberta das particularidades do “outro”. Pela RTP2 já passaram, com apresentações da realizadora Catarina Mourão, Metaal en melancholie (Metal e Melancolia, 1994) e O Amor Natural (1996). O que têm em comum, por um lado, a classe média peruana no início dos anos 90, obrigada a transformar os seus velhos carros em táxis improvisados de modo a combater a crise financeira, e, por outro lado, a poesia erótica de Carlos Drummond de Andrade lida por populares e actores da “cidade maravilhosa”? Uma coisa aparentemente simples: uma aproximação sensível e envolvente às pessoas. Esta dimensão humana aproxima Honigmann ao já citado Joris Ivens, mas a sua técnica de entrevista – descontraída, mas sempre atenta e aberta ao “outro” – lembra a de outro documentarista seu contemporâneo, o brasileiro Eduardo Coutinho.
Em Metaal en melancholie, Honigmann entra nos mais diversos carros-táxi para conhecer a vida – às vezes, registando apenas pequenas opiniões ou impressões sobre a existência – de quem os conduz. Duas histórias comoventes: um homem que trata o carro trintenário como um irmão, falando, desabafando, até ralhando com ele; outro entrevistado lembra uma paixão arrebatadora que viveu com uma mulher italiana, de quem apenas guardou uma cassete de música, que inclui um pasillo do Equador que canta um amor vivido à distância. São entrevistas, mas, ao mesmo tempo, estamos longe do modelo tradicional (jornalístico/sociológico) de pergunta-resposta. Honigmann privilegia o silêncio, deixa respirar, ou melhor, deixa ser. Mais do que entrevistar propriamente, Honigmann permite-nos, pelo modo da sua presença, estar com as pessoas que filma.
Isto mesmo volta a acontecer em O Amor Natural. Aqui, a palavra erótica de Drummond ganha vida na voz de todo o tipo de gente: jovens e velhos, letrados e iletrados, amigos ou admiradores do poeta, todos cantam, à sua maneira, o amor de Drummond pela vida e pelo sexo. O mais interessante aqui é o modo como através de um livro, de um conjunto de poemas, Honigmann põe as pessoas a falarem de si e, num dos casos, a dirigirem-se ao poeta directamente. Neuma, uma ex-bailarina do carnaval brasileiro, com uns digníssimos 74 anos, chega mesmo a dizer com a voz tomada pela emoção: “obrigado, Drummond”. Pode a poesia ter mais força do que isto: tornar-se, para quem mal sabe ler, num “tu” terno e eterno?