Vamos lá ver: o que é que se pede de um filme? Diriam muitos cinéfilos: que conte uma boa história, que tenha boas interpretações, que saiba coser – e cozer – os vários momentos da narrativa. Dizem esses muitos cinéfilos e dizem muito bem. Mas não, isso não é tudo. É preciso algo mais? Sim, mas um “algo mais” que está a montante de tudo isso, portanto, um “mais” que aponta para um “menos” essencial. Porque o que verdadeiramente deve relevar num filme é o seu cinema. Parece ser esta uma frase presunçosa, mistificadora ou redundante. Não é. Não abundam – e se calhar nunca abundaram – filmes que se regem fundamentalmente por um conjunto de “ideias de cinema”, isto é, obras que giram em torno de soluções de realização, iluminação ou montagem, que não se deixam tornar cativas da tendência novelizadora do cinema contemporâneo (ele, por sua vez, cativo das fórmulas televisivas e noticiosas que desbobinam historietas e enxertam “dimensão dramática” à velocidade da luz). O que é que se pede de um filme? Eu quero responder a isso aqui e agora, sob o efeito desta lição de cinema chamada The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016).
The Conjuring 2 mostra-nos como o grande cinema dos filmes reside em gestos (dos actores), coreografias (de câmara), intensidades (de luz e sombra) e soluções (de montagem) que fazem de cada sequência uma pura invocação (demoníaca ou não, possessiva ou não) do “cinemático”. Wan é um dos poucos realizadores de câmara no activo – digo “de câmara” também no sentido akermaniano do termo. Ele trabalha cada um destes elementos – gestos, coreografias, intensidades e soluções – com a precisão de um relojoeiro. Os brinquedos maléficos que ele colecciona no primeiro e segundo The Conjuring apenas reflectem o seu gosto em montar e desmontar os recursos antigos do cinema – não é acidental que aqui o principal brinquedo seja um dos mais célebres dispositivos do pré-cinema, um zootropo que conta (e canta) a lenda do assustador “Homem Torto”.
Wan dá forma a um cinema cinemático, qual brinquedo que actualiza, no “cinema of attractions” dos primitivos, tais como Thomas Edison, Georges Méliès, Benjamin Christensen e, acima de tudo, Segundo de Chomón, as potencialidades dos recursos mais elementares do cinema: desfocagem, profundidade de campo, grande plano, subjectiva, panorâmicas, dolly shots. Cada uma destas ferramentas são talhadas a preceito por forma a eivarem o espaço fílmico daquilo que Wan, enquanto mestre do cinema de terror, pretende conduzir até ao espectador: a electricidade do medo.
Não há espaços de descanso em The Conjuring 2, mas – e isso é que é absolutamente notável – também não há espaços de esgotamento. As sequências colam-se umas às outras através de uma simplicidade narrativa – que não existia ainda no primeiro tomo – que a câmara e a montagem suportam e fazem transcender através de voos no espaço, que, à la David Fincher, não conhecem obstáculo, e de raccords em continuidade que colam a noite ao dia sem que o corte seja perceptível. As forças do mal, adormecidas na casa da simpática família inglesa no filme, estão desassossegadas. E são elas que comandam os tempos da narrativa. Logo, Wan propõe-se afinar a sua maquinaria do horror como – até porque o grito não está sempre longe da gargalhada – um velho realizador burlesco do primitivo – por exemplo, como um Buster Keaton, amante de máquinas bem oleadas do humor – que transita de gag em gag num exercício incessante de auto-superação. Não há gargalhadas aqui – talvez apenas de nervosismo perante o bestiário arrepiante que Wan nos reserva. Há arrepios na espinha, pele de galinha e gritos lancinantes. A orquestração das sequências de terror é de uma eficácia impressionante, precisamente porque não cede às soluções fáceis e já vistas, porque deixa o tempo concentrar-se, ganhar solidez, peso e entrar em putrefacção lenta.
O bestiário de Wan é aterrador, mas de nada valeria esta “colecção” (de sustos e brinquedos) sem o pensamento formal que a sustenta. É aí que Wan se destaca da concorrência.
O grande cinema de terror não tem medo que uma simples e antiquíssima solução do cinema seja o principal motor de uma cena: na sequência em que o pequeno Billy é atraído pela escuridão da sua tenda de índio, lugar onde guarda os brinquedos favoritos, Wan diverte-se a brincar com a profundidade de campo e com um movimento panorâmico insistente que vai pondo a tenda dentro e fora de campo, consoante a sua visão nos é tapada ou não pela parede do quarto – um jogo formal de hide and seek que é apanágio de Wan. A atracção de Billy pela escuridão é transferida – e amplificada – no olhar do espectador através destes mui perversos – perversamente elegantes – apontamentos de câmara. Noutro momento, o casal de médiuns do filme, os Warren, assistem in loco, pela primeira vez, à possessão de Janet (interpretação excelente de Madison Wolfe, em versão inglesa de Linda Blair). A mando do demónio, Ed (Patrick Wilson) fala com ela de costas. Wan filma a sequência através de um longo plano fixo que mostra Ed em primeiro plano, sendo que desfoca (e vemos o efeito dessa desfocagem) a pequena Janet em segundo plano. A possessão tem lugar, mas a sua manifestação é mais auditiva do que visual, ainda que a desfiguração da sua imagem tenha o poder de infundir de inquietude toda a sequência. É um truque velho do cinema que ganha aqui uma frescura notável.
As “ideias de cinema” multiplicam-se neste filme. Não há espaço nesta crítica para detalhar a sequência da televisão, a Oscar Wildiana sequência do quadro, essa poderosa imagem dos crucifixos virados ao contrário, o uso criativo das subjectivas ao jeito de um Silence of the Lambs (O Silêncio dos Inocentes, 1991), todo o extraordinário desenho de som, etc. Wan vive um momento de esplendor criativo. Ele desenha cada sequência com régua e esquadro, transformando a criação de horror num problema muito concreto de ocupação dos espaços: o espaço confinado da casa e o espaço, potencialmente infinito, do ecrã – para aos lados, para o fundo, a câmara flui elegantemente sem encontrar barreiras. Todos nós sabemos: alguns dos maiores realizadores do terror (eu prefiro dizer: do cinema, ponto) trabalham essas duas dimensões em simultâneo. Falo de Tourneur, Hitchcock e Carpenter. Em The Conjuring 2 há uma gramática que se solidifica, se “essencializa”. O bestiário de Wan é aterrador (dificilmente não entrará nos nossos pesadelos a freira diabólica que concentra em si, na sua ubiquidade sinistra, os males da Igreja e da doutrina católica), mas de nada valeria esta “colecção” (de sustos e brinquedos) sem o pensamento formal que a sustenta. É aí que Wan se destaca da concorrência. Ver um novo filme de Wan é subir sempre dez degraus em relação ao que os outros estão a fazer. Tudo devém caduco, já visto, privado dessa tal electricidade que nos faz agitar o espírito: o Cinema. Neste momento – e se calhar neste ano -, não se faz maior elogio a Ele, nas nossas salas. Até apetece escrever: nestes dias, não encontro melhor sinónimo para cinema que James Wan.