Estou na praia com as calças arregaçadas à bom beto de Lisboa. Dizem-me que a água está fria, algo que os meus pés já haviam confirmado. Como uma sandes de queijo, uns pedaços de meloa e, de tronco nu para preservar o bronze que se vem instalando há semanas, continuo a ler o livro púrpura que trouxe, Queer do William S. Burroughs — agora editada pela Quetzal — que em Portugal se chama Bicha. Por entre as páginas de Burroughs há espaço para deambulações teóricas sobre as origens do xadrez ou os poderes telepáticos das drogas da América do Sul, assim como descrições agudas de morte por hemorróidas, do alcoolismo entre o cool e o decadente e um desejo infinito por corpos masculinos (e apesar de tudo, sempre muito pudico — as palavras são tão curtas como os orgasmos). Enfim, por entre as páginas que vão rolando diante de mim surge mais um desses devaneios imparáveis que Lee, o protagonista, inicia (como se as palavras lhe saíssem de mãos dadas pela boca, trazendo consigo sempre mais outra): fala-se do intervalo que existe entre o oriente e a mitificação exótica deste pelos ocidentais. Lee descreve um xamã agarrado aos comprimidos que entre baforadas de noz de areca deitadas pelas ventas faz passar a “bezerra” pelo “transe cósmico”. Tudo para concluir que “é essa a sabedoria do Oriente. Os ocidentais pensam que há algum segredo a descobrir. O Oriente diz: ‘Como raio hei-de eu saber?'”. An (Uma Pastelaria em Tóquio, 2015) de Naomi Kawase é uma versão Food Network desse xamã: entre a mitificação para ocidental ver e o lacrimejo do melodrama televisivo.
An é o título do filme que por estas terras virou Uma Pastelaria em Tóquio, mas que se refere à pasta doce de feijão que recheia os bolinhos que encabeçam este parágrafo (o título internacional é Sweet Bean que sendo mais fiel não deixa no entanto de revelar o lado delico-doce do que está por vir). Essa pasta é então o “segredo a descobrir”, uma receita tão antiga que tem que vir de uma senhora velhinha e leprosa, abandonada da civilização durante décadas pelo medo ignorante do outro que é diferente dos demais. Essa velhinha vem reanimar o negócio de um tarefeiro do bolinho, e claro — como em todos os filmes de culinária — reanimar também a sua vida porque afinal é possível lutar contra as dificuldades, ser feliz apesar das contrariedades, vencer os medos, vingar naquilo que nos parecia impossível, acreditar no improvável, trabalhar arduamente no que se acredita, seguir o coração, ouvir o que o universo nos diz, sentir as vibrações do mundo, confiar nos nossos instintos… e tantas mais frases feitas quanto se queira.
O segredo não é culinário, é a lição de vida que interessa e que a receita da pasta doce de feijão metaforiza: o segredo do Oriente que Kawase nos quer passar é a ideologia da salvação pelo trabalho.
Então o segredo do Oriente para fazer a massa doce de feijão passa por demolhar o dito durante a noite, cozê-lo lentamente, fazer transbordar as impurezas que dele se libertam, envolvê-lo em açúcar e deixar caramelizar até que se adiciona um ingrediente de uma estranheza incomum: uma langanha transparente. Deixar repousar num tabuleiro largo e quando frio, barrar a gosto sobre panquecas fofas (mais ou menos como aquelas dos pequenos-almoços do MacDonalds) com cuidado de não reduzir a puré uniforme aquela que se quer uma massa texturada pelos falópios da leguminosa. Mas como já se percebeu, o segredo não é culinário, é a lição de vida que interessa e que a receita da pasta doce de feijão metaforiza: o segredo do oriente que Kawase nos quer passar é a ideologia da salvação pelo trabalho, da perseverança, do empenho e da dedicação — esses sim, valores muito japoneses (ao que parece).
O filme de Kawase é apenas mais uma encarnação (nem se quer a necessária e esperada cristalização) da elevação da culinária a guru da sociedade moderna televisiva: os MasterChefs e os Kids, os Chopped, os Cake Bosses e as Cake Wars, as Iguarias do Rudolf e os Segredos da Tia Cátia, as sensualidades da Nigella, a franqueza do Jamie, o bonacheirão Bourdain e a rispidez afectuosa de Ramsay. Agora o televisivo está também nos vídeos de dois minutos das redes sociais onde a figuração do humano se resume à mão que manipula o ingrediente e à boca que o traga lascivamente. O cinema não tem sido indiferente a isso: Ratatouille (Ratatui, 2007), Julie & Julia (2009) ou Soul Kitchen (2009) para citar de memória alguns dos mais certeiros exemplos, mas todos os anos se vêm acumulando filmes que tentam mimetizar (normalmente com pouco sucesso) os efeitos erótico-gulosos que a televisão soube construir. E o que torna esta vaga de cine-culinária mais exasperante é esta necessidade — afinal tão ocidental como oriental — de encontrar na comida a significação da vida qual livro barato de auto-ajuda. Como se a receita secreta dos pastéis de Belem se revelasse um dos segredos de Fátima e que, afinal, só o Éder conhece e foi ele que lhe permitiu marcar o golo vencedor do Europeu. A mim, sou sincero, tanto me satisfaz um sushi com creme de queijo e banana (very typical) como uma entremeada ressequida da tasca do Ti’Lurdes (trés gourmet) e confesso que um sumo detox, uma piadina e um iogurte gelificado no Principe Real também não ficava nada mal. Pronto, admito-o sou muito boa boca, comigo marcha tudo. Tudo, menos a pasta doce de feijão da senhora Naomi Kawase.
É que o pior de An é mesmo a forma como transforma todos estes lugares comuns da auto-ajuda, apoiados no exótico do Japão, para contar a história chorosa dos leprosos que durante décadas viveram em quarentena, e que ainda hoje sofrem de descriminação. Manobra de puxa lágrima tão evidente que se torna risível. Efeito de manipulação tão sensaborão quanto o filme.