Chegados a meio do festival, aparecem já alguns sinais de como, no futuro, poderá ser recordado este Curtas. Mesmo com a competição nacional ainda a meio-gás, já foi possível vislumbrar algumas boas surpresas, em particular na noite de abertura. A noite e o palco de quarta-feira pertenceram aos Tindersticks, numa sublime apresentação do seu filme-concerto “The Waiting Room”, com uma perfeita sintonia entre os pequenos filmes que acompanhavam a música e a voz de Stuart Staples, com as sombras dos músicos a aparecerem sobre as imagens na tela.
O 24º Curtas começou no sábado passado com a exibição de duas longas-metragens, duas primeiras obras com alguns pontos de contacto em comum. James White (2016) é o primeiro filme de Josh Mond, do colectivo Borderline Films, para o qual já produziu filmes de Sean Durkin (Martha Marcy May Marlene, 2011) e Antonio Campos (Afterschool, 2008). Se visualmente este filme é próximo de Simon Killer (2012), na utilização do esquema de cores e no recurso à música para definir um ambiente próprio, Mond parece menos cínico na sua abordagem à história, ou pelo menos terá maior fé nas personagens. Talvez por isso o filme afunile a sua perspectiva (até no título), adoptando uma perseguição de perto à personagem principal que dá o nome ao filme e que entra em todas as cenas, admiravelmente interpretada por Christopher Abbott (actor conhecido da série televisiva Girls). É uma estética próxima do cinema europeu de realismo social, que lembra também o cinema dos irmãos Safdie (Go Get Some Rosemary, Vão-me Buscar Alecrim, 2009). O filme conta a história de James, um jovem cujo pai acabou de morrer e com uma mãe doente com cancro, encurralado por um presente em que os caminhos começam a fechar-se e um futuro sem grandes perspectivas, formando, também, um retrato geracional. A palavra-chave do filme é ambiguidade, como símbolo de complexidade e de aproximação a uma realidade que não é nem branca nem preta, e que apela à empatia com uma personagem presa entre a autodestruição e o peso em cima dos seus ombros. A meio do filme há uma sequência brilhante na ilustração quer dessa ambiguidade, quer do olhar subjectivo da câmara: James levanta os punhos como se estivesse a lutar contra o espectador, mas pouco depois percebemos que está a olhar para o seu reflexo num espelho – e mais tarde, aparece com uma mão ensanguentada sem vermos o que aconteceu, excepto um espelho ensanguentado na cena seguinte. É um filme comovente e surpreendente, onde o final surge como um murro no estômago.
Antes foi possível assistir à estreia de Diamond Island (2016) de Davy Chou, autor premiado em 2014 no Curtas pela sua obra sobre o Camboja, tema ao qual regressa agora. Este filme partilha com James White o retrato de uma geração presa entre dois mundos, como se se tratasse de um novo proletariado, que lhe vê, assim, vedada a ascensão social, mas que, ao mesmo tempo, é confrontado com um materialismo que é inacessível, nem que seja através dos écrans dos telefones e tablets. É um retrato agridoce próximo do cinema de Jia Zhang-Ke, e em particular do filme The World (O Mundo, 2004) nessa ilustração de um estranho estado de melancolia por diagnosticar, mesmo que menos pessimista. O filme acompanha um grupo de jovens que trabalham na construção de um inatingível complexo de luxo, e em particular um dos mais introvertidos, na forma como ocupam o tempo entre o trabalho e as noites onde sonham com outro futuro distante. O filme, tal como James White, tem no centro uma relação familiar conturbada, onde reside a chave do destino imediato. É um filme envolto numa extraordinária sensibilidade poética (como nas inebriantes viagens pelas luzes noturnas da cidade, ou nos gestos contidos dos encontros amorosos) que, para uma primeira obra, revela já um olhar maturo e astuto sobre uma realidade própria, e deixa sobretudo um nome a reter para o futuro.
Ainda antes da Competição Nacional começar, na segunda-feira, havia uma sessão do Panorama Nacional, uma mostra de filmes produzidos em Portugal no último ano – mas a feliz final do Euro acabou por sobrepor-se a essa sessão. Dos filmes que foi possível ver na repetição da sessão, destaque para dois filmes brilhantes. Primeiro, o já conhecido (com passagem no IndieLisboa, Desobedoc e com estreia comercial) e multi-premiado Balada de Um Batráquio (2016) de Leonor Teles. Um filme que, mais do que pelo valor intrínseco das suas imagens ou narrativa, encontra importância no gesto estrondoso que representa, na materialização do cinema a agir sobre a realidade. Se na primeira parte do filme as imagens de antigos filmes caseiros ajudam a evocar com candura uma herança cultural, a segunda parte do filme, na qual a realizadora entra em estabelecimentos comerciais para pegar em sapos de loiça e desfaze-los contra o chão, aproxima-se de um registo performativo. É uma originalidade irreverente que, ao mesmo tempo que imagina uma nova forma para o cinema como protesto, provoca o espectador apelando à continuação do seu gesto. O outro título a reter desta secção é Ascensão (2016) de Pedro Peralta, apresentado em Cannes este ano: com três planos apenas, constrói-se um estonteante filme. Algures entre a reverência ritualista de Manoel de Oliveira e a transcendência cénica de Tarkovsky, uma história simples (um salvamento de um homem caído num poço) ganha contornos quase sobrenaturais, dominada por uma neblina, sons e vozes guturais que assombram a acção fora de cena. A solenidade com que a câmara se movimenta e filma os rostos desgastados e derrotados é a mesma exigida pela morte, e este é também um filme de olhares e silêncios, ou seja, de emoções escondidas.
A competição nacional apresentou, para já, uma série de experiências ou exercícios visuais sem grandes destaques, onde parece faltar uma mensagem, como se as histórias estivessem esquecidas. Já o nunca esquecido mito de D. Sebastião, o rei desaparecido em combate e com promessa de regressar, faz uma aparição em Sebastião, O Fantasma (2015) de Lúcia Prancha. Um híbrido entre ficção e documental, é um filme sobre os Sebastianos, os residentes de Lençois, autoproclamados descendentes diretos de D. Sebastião, numa terra perdida algures no Brasil. O filme divide-se em dois momentos: primeiro, começa por registar depoimentos dos locais, com as suas histórias fantásticas de fé no misticismo, acompanhadas de imagens de tarefas laboriosas, como que indicando um outro tempo, outro encantamento. Depois, ensaia-se um regresso do rei pela escuridão, numa frágil liberdade poética que apenas é resgatada pela luz dos rostos filmados. É um filme que, na sua dissimulação entre documental e ficção, não é inteiramente original na abordagem nem especialmente entusiasmante na escolha de imagens, mas que arrisca um conceito.
A Casa ou a Máquina de Habitar (2016) de Catarina Romano é um filme que joga em dois planos: de um lado, vozes anónimas contam histórias sobre lembranças de afectos a casas com diferentes contextos; do outro, uma animação procura acompanhar essas histórias, correspondendo-lhes diferentes interpretações visuais. Se o filme é irregular pelo variado interesse dos depoimentos que acompanham as imagens, revela complexidade na abordagem, mas é pouco mais do que um exercício de técnica.
A esperança para esta primeira sessão competitiva recaia em Setembro (2016) de Leonor Noivo, autora já premiada anteriormente no festival. Um filme sobre um estado de espírito, o fim de um verão, o regresso a casa e um novo começo, e a relação entre uma mãe e o seu filho. Mas este é também um filme desigual. Depois de um preâmbulo em que a mãe e o filho ocupam o mesmo espaço, é quando cada um segue por caminhos diferentes numa exploração noturna que surge essa divisão. De um lado, a história da mãe que se encontra com um homem, é pontuada por uma voz-off com pensamentos estéreis, que retiram espaço às imagens, sem nenhum acréscimo. Do outro lado, uma história de pequenas transgressões do filho, que sem voz, dá corpo a uma ansiedade palpitante, na incerteza de que algo irreparável possa acontecer. É uma diferença sublinhada pelo próprio filme na forma como filma dois encontros na praia (da mãe com um homem, do filho com uma rapariga), no modo como a câmara se distrai com imagens de paisagens no caso da mãe, e como segue sem tréguas os corpos no caso do filho – é uma dispersão que prejudica o próprio filme.
Um zootrópio é por definição um instrumento óptico, com uma série de imagens no seu interior, que quando vistas através de um conjunto de frestas, aparenta ilusão de movimento. Ora, Zootrópio (2016) de Tiago Rosa-Rosso, primeiro filme da segunda sessão da competição nacional, será o equivalente cinematográfico desse instrumento, um carrossel de imagens com o espectador no centro, em que um plano dá a ilusão de movimento. Quatro personagens dentro de um enquadramento que se repete interagem num loop de gestos e jogos de palavras, como o desfiar de um novelo. No entanto, se há algum interesse em observar como as mesmas afirmações ou acções podem ter significados diferentes quando entoados por uma mulher ou por um homem, o filme não passa do exercício visual que perde fulgor com a repetição, demasiado ancorado numa encenação teatral e ao seu próprio mecanismo.
Penúmbria (2016) de Eduardo Brito é um curioso exercício visual e de imaginação. Uma ficção filmada como um documentário, apresenta uma vila à beira mar como se estivesse abandonada, com as suas ruas e edifícios desertos como ruínas, despojados de habitantes e sem vida. Porém acaba assim por ser mais próximo de um documentário sobre arquitectura, ao observar a ocupação do espaço e a intervenção humana sobre a natureza. Apesar de uma inteligente e habilidosa construção narrativa e uso dos esparsos recursos, apoia-se numa única ideia, cuja monotonia se alonga e é apenas salva por um rasgo surpreendente de humanismo perto do final.
Fiesta Forever (2016) de Jorge Jácome é outro exercício estilístico, mas como menos inventivo, parece uma ideia esticada ao limite. Uma investigação arqueológica a discotecas abandonadas, onde a câmara passeia por entre ruínas modernas enquanto ouvimos conversas fantasmas de vozes distorcidas, como se ouvidas através de um rádio ou telefone. Se há algum fascínio inicial por esta representação física, como num jogo de computador, e pela forma como a câmara parece seguir à procura daquelas vozes, o filme acaba por ser um exercício vazio e repetitivo, à medida que a nostalgia se apaga.
Severed Garden (Jardim Separado, 2015) de Gonçalo Almeida foi a grande revelação, até agora, desta secção. Uma espécie de pesadelo lynchiano (sem hipótese de confusão com um sonho), é uma cuidadosa construção de um ambiente sensorial como se se tratasse de um espelho de um estado de espírito. Um filme feito de pequenas elipses, de pequenos avanços no tempo que na realidade são um encadeamento noutro pesadelo, é como se com cada corte déssemos um salto para o desconhecido da escuridão, sem imaginar o que se segue. Como um puzzle sem solução, não tem receio de desorientar o espectador, permitindo espaço para este procurar a sua própria interpretação, e o seu encantamento.
O Curtas continua até Domingo dia de 17 de Julho. A programação pode ser consultada neste link.