Nos primeiros dias do festival o principal atractivo tinha sido a competição internacional, com vários títulos memoráveis nesta edição. As curtas nacionais pareciam esperar ainda por algo redentor, e se os últimos dias deixaram algumas certezas, também revelaram outras tantas incertezas. Conhecido o palmarés do festival, as escolhas para a competição nacional pareceram consensuais. É raro os prémios do público e do júri coincidirem, mas António, Lindo António (2015), de Ana Maria Gomes, vencedor do prémio para Melhor Filme e vencedor do Prémio do Público, foi o que ficou mais próximo de ser um filme completo. Dos vários exercícios visuais apresentados ao longo do festival, a escolha para melhor realizador nacional acabou por recair sobre um nome já conhecido, Gabriel Abrantes, que apresentou a concurso um dos melhores conceitos.
“Hey guys, this is Gabriel Abrantes” – assim começa de forma desarmante o novo filme do prolífero artista. A Brief History of Princess X (Uma Breve História da Princesa X, 2016) é uma divertida subversão do formato documentário, uma história sobre uma polémica estátua, que, na realidade, é a história do seu escultor (Constantin Brancusi) e da figura retratada (Marie Bonaparte), cada qual com fascinantes detalhes. Este é também um documentário sobre o próprio filme, desconstruído em directo pelo realizador, num tom jocoso que se diverte com as imagens que acompanha, provocador de reacções juvenis – do autor e do espectador (“Is it a joke? Is it serious? I can’t tell”) – perante uma obra de arte. Mesmo sendo um pequeno exercício, é uma reflexão pertinente e incisiva sobre a arte e os seus diferentes papéis, interpretações e equívocos, que revela um apurado sentido crítico deste universo.
António, Lindo António (2015) de Ana Maria Gomes é um documentário que à primeira vista poderia ser confundido com tantos outros que se deslocam ao interior de Portugal para olhar com curiosidade o “exotismo” dos habitantes locais. Porém, em vez de partir à procura desse olhar com distância, encontra uma história e, acima de tudo, personagens, que retrata com um humanismo contagiante. Ajudado pela ligação familiar às pessoas que filma – afinal, esta é a história de um tio da realizadora, que emigrou novo para o Brasil e nunca mais voltou ou deu notícias – Ana Maria Gomes compõe aos poucos a história das pessoas que ficaram para trás, revelando a distância sentimental entretanto cavada. Através de momentos do quotidiano repetitivo da sua avó e dos seus tios, vai somando-se um ressentimento que ilustra perfeitamente a abnegação e teimosia de quem é confrontado com alguém que partiu à procura de melhor. Cria-se, também, uma espécie de lenda sobre a figura ausente de António, uma memória desvanecida à qual cada um acrescenta um ponto, numa construção colectiva explorada de forma inteligente por Gomes quando viaja até ao Brasil à procura do tio. Porém, é na forma do desfecho, no espaço que permite às personagens encontrarem o seu próprio tempo, que esta estreia promissora é confirmada.
É verdade que não houve muitos filmes de animação este ano na competição nacional, mas Fim de Linha (2016) de Paulo d’Alva e António Pinto, destacou-se como o melhor. De execução maníaca e rica em ideias, é uma animação evocativa de uma herança cinematográfica quanto à composição e encadeamento dos planos. Ao abordar registos variados, entre a representação onírica de alucinações e uma realidade onde algo parece estar ligeiramente errado, apresenta uma construção complexa da mente da sua personagem principal.
Pedro (2016) de André Santos e Marco Leão, destaca-se inicialmente pelo nomadismo sentimental da sua personagem principal. No entanto, é inevitável a comparação a L’Inconnu du Lac (O Desconhecido do Lago, 2013) de Alain Guiraudie, quer pelo tema, quer pela estética (o que até pode ser injusto, já que esta curta teve uma produção que se alongou por mais de 2 anos), mas falta-lhe o mistério e tensão, parte essencial da carga emotiva desse filme. Com uma sensibilidade admirável, em particular quando filma as personagens isoladas, oprimidas pelo espaço vazio à sua volta, não ultrapassa, contudo, o esboço das suas personagens – como a relação entre o filho e a mãe – e ficando-se apenas pelo estudo de um desapego niilista, sem grande repercussão.
À Noite Fazem-se Amigos (2016) de Rita Barbosa é uma primeira obra, mas que parece conter já todo um universo particular. Numa casa nos bosques, onde vários amigos se encontram durante uma noite antes de partirem num passeio, o filme recorre a figuras conhecidas, como João Nicolau ou Mariana Ricardo, para construir um retrato familiar do cinema português, numa tangente a filmes semelhantes, em particular a primeira longa-metragem de Miguel Gomes, A Cara que Mereces (2004). É uma obra problemática, pelo contraste óbvio entre os seus dois elementos principais. De um lado, uma fotografia com planos capazes de encantar e exprimir, por vezes, mais do que mil palavras. Por outro lado, as imagens são acompanhadas de diálogos, monólogos ou uma narração incessantes e insossos, que não encontram correspondência nem nas tais imagens, nem no espectador. É um mecanismo que não convence, demasiado virado para dentro, que resulta num filme à deriva.
Anabela Moreira tinha dito numa entrevista que o seu primeiro filme, O Dia do Meu Casamento (2016), co-realizado com João Canijo, era um pequeno exercício, com alguns detalhes pessoais que talvez não se traduzissem imediatamente para o espectador. Se o tema do filme, um diário intimista e familiar de um dia de casamento é universal, o grande mérito do filme é a sua composição cénica. Recorrendo a uma série de planos fixos elaborados, que funcionam como pequenos quadros repletos de um mosaico de personagens e interacções, estes quadros representam o lado caótico e a fugir ao controlo de um dia assim, que envolve toda a família. Se quanto à ocupação do espaço o filme é uma experiência complexa, falta uma maior elaboração na apropriação da ideia a uma realidade, que não seja uma simples tentativa de recriação ou caia no exagero. O olhar que o filme propõe, ao acompanhar uma criança, para opôr essa rebeldia infantil de quem faz o que quer, com a noiva que entrega-se e aceita anular-se, fica-se por uma leitura pouco ambiciosa.
Esse olhar sobre o mundo através de uma criança é um tema recorrente no cinema nacional, e Cidade Pequena (2016), de Diogo Costa Amarante, apresenta-se como mais uma variação, em parte, promissora. A acompanhar as imagens há um texto, onde narradores empáticos tentam criar uma dimensão extra para o filme, com um diálogo entre o realizador e a sua irmã (mãe da criança do filme). Contudo, as imagens dispensam essa contextualização, como se a beleza das imagens funcionasse melhor em abstracto, como se bastasse o olhar aturdido da criança em relação ao mundo em redor para contar uma história, para emular a estranheza de não pertencer ainda a esse mundo. As cuidadosas composições são capazes de produzir imagens hipnotizantes, que podiam funcionar em loop, como um fabuloso e subtil detalhe num plano de uma piscina onde uma das figuras fica presa na repetição de um gesto. Falta algo que liberte o filme de um marasmo narrativo, apesar das boas ideias (como os disparos que se ouvem no início, ou a tal sequência gif) que pontuam o filme.
Por fim, Por Diabos (2016), de Carlos Amaral, é uma curiosa etno-ficção disfarçada de documentário, a lembrar, dentro do mesmo género, o filme de Manuel Mozos, A Glória de Fazer Cinema em Portugal (2015). Esta é uma engenhosa imaginação de uma história, contada através de elementos documentais como registos fotográficos, testemunhos orais ou filmagens de arquivo. O filme procura assim recriar uma investigação do desaparecimento misterioso de uma rapariga, algures em Trás-os-Montes, e o próprio narrador parece influenciado pelas lendas e estranhas figuras à medida que esta pesquisa avança. Dentro do espectro dos exercícios visuais apresentados em competição é um dos mais completos, mesmo que não ultrapasse nunca o alcance da ideia original.
No geral, não foi dos melhores anos para a competição nacional, mas também não foi dos piores: além da descoberta de novos autores, como Ana Maria Gomes ou Gonçalo Almeida, vários filmes deixaram esperança para o futuro (casos de Diogo Costa Amarante, Carlos Amaral ou Lúcia Prancha), além da confirmação um nome já consagrado como Gabriel Abrantes. A vantagem de um festival com diferentes programas e variadas propostas como este é que há sempre alguma coisa à espera de ser descoberta. E não faltaram filmes deslumbrantes na secção internacional. Desde logo, o filme vencedor do prémio Melhor Ficção, Limbo (2016) de Konstantina Kotzamani, confirma uma cineasta que, com uma longa-metragem em produção, promete transformar-se num fenómeno sério. Uma fábula à procura de intertemporalidade, é uma construção sensorial e lírica arrebatadora, elusiva e sem grande preocupação com uma linha narrativa. Inspirado por um imaginário bíblico, cria o seu próprio universo, e aproxima-se de uma experiência religiosa na evocação de um efeito transcendente, permitindo ao espectador a descoberta de um significado e encantamento pessoal – lembra assim os primeiros filmes de Von Trier e o seu domínio estilístico, mesmo que muito menos sombrio, ou o mundo-fábula de Innocence (Inocência, 2004) de Lucile Hadzihalilovic. A Moça que Dançou Com o Diabo (2016) de João Paulo Miranda Maria é uma entusiasmante modernização de uma antiga lenda, que ao apresentar o desafio de uma rapariga perante uma herança conservadora, mostra também nessa rebeldia possível um retrato de um Brasil em convulsão, com o filme a ter o seu próprio gesto provocador. Import (2016) de Ena Sendijarevic é um olhar agridoce para a integração de uma família imigrante, repleta de compaixão mesmo nas situações mais absurdas, e que brinca com um enquadramento onde as personagens surgem descentradas, pelo menos até à resolução feliz. No campo do documentário, o prémio foi para Notes From Sometime, Later, Maybe (2015) de Roger Gómez e Dani Resines, um filme a partir da descoberta de um cineasta amador esquecido no meio da América, que filmava as pessoas comuns na rua como forma de chamar público às sessões, e que revela-se comovente pelos depoimentos dos que ainda vivos comentam essas imagens dos mortos; assumindo-se ao mesmo tempo como um filme inacabado, é o resultado de uma memória que ainda vai-se construindo. The Illinois Parable (2016) de Deborah Stratman ficou também na retina pelo âmbito da sua leitura e interpretação política da história de um local bem definido, como se tratasse de uma versão miniatura da América. Relacionando, por exemplo, o extermínio dos indígenas americanos com a perseguição ao movimento dos Black Panthers na década de 60, provoca permanentemente o espectador e apresenta um território em permanente agitação, senão mesmo em direcção à extinção. Na animação, o prémio foi para Decorado (2016) de Alberto Vázquez, vencedor também do Prémio do Público para a competição internacional, uma igualmente divertida e deprimente perversão das histórias infantis, com as suas personagens a ganharem consciência que são figuras fictícias, num estilo corrosivo e implacável.
A competição experimental apresentou este ano algumas das obras mais idiossincráticas do festival, numa secção onde parece permanentemente discutir-se o futuro (ou a continuidade) do cinema. De Christoph Girardet, que colaborou com os Tindersticks na parte visual de “The Waiting Room”, apresentado ao vivo durante o festival, foi possível ver duas das curtas mais intrigantes do festival: Synthesis (2015) é uma re-interpretação de um texto bíblico sobre a criação da Terra através de imagens de laboratório, num comentário irónico; mas é Personne (2016), uma colaboração com Matthias Müller, que deixa o espectador abalado: através de centenas de pequenos clips de filmes mais ou menos antigos, Girardet e Müller criam um novo filme a partir dessas ruínas, numa sequência onde a continuidade ameaça deixar o espectador perdido dentro daquelas imagens, a ver o mundo em repetição. Igualmente estonteante, mas trabalhando numa componente completamente diferente – a percepção pelo cérebro dos nossos sentidos perante manipulações da luz modelada por computador, e as imagens fantasmas com que ficamos ao piscar os olhos – Rainer Kohlberger apresentou Not Even Nothing Can Be Free Of Ghosts (2016), um verdadeiro ataque sensorial ao espectador. Destaque ainda para um dos títulos apresentados na secção de ensaios audiovisuais dedicados aos filmes de Mark Rappaport. Se este já nos habitou a verdadeiras aulas de cinema, com Debra Paget, For Example (2015), a sua obra acrescenta um olhar humanista, dando destaque a uma actriz esquecida no seu próprio tempo. Através das considerações de Rappaport, e acima de tudo de um diário ficcionado das experiências da actriz como uma das várias contract girls que eram utilizadas e depois descartadas por Hollywood, a sua memória é aqui resgatada numa homenagem compassiva.
O júri decidiu atribuir o Grande Prémio a From the Diary of a Wedding Photographer (2016), do israelita Nadav Lapid, um filme algo perdido entre um registo intimista, filosófico e humorista, cujo teor meta-fílmico terá agradado ao júri; o Prémio de Melhor Filme da Competição Experimental foi atribuído a Bending To Earth (2015) da alemã Rosa Barba, sobre uma ruminação, a partir da distância de um helicóptero, de paisagens que mais parecem alienígenas, que na realidade são depósitos de resíduos radioactivos, como feridas abertas da intervenção humana sobre a natureza. A lista completa de prémios pode ser consultada aqui. Alguns dos filmes do programa do Curtas serão exibidos pelo Porto/Post/Doc no Cinema Passos Manuel no Porto, na quarta-feira dia 20, pelas 22h; uma selecção dos filmes premiados nesta edição e três curtas-metragens de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata (presentes no festival com uma exposição e uma carta branca) serão exibidos pela Cinemateca Portuguesa entre os dias 21 e 23 de Julho. A lista completa das extensões do festival, que vão levar alguns dos filmes premiados a várias cidades do país pode ser consultada aqui.