Wang Tung (cujo nome é por vezes grafado como Wang Toon ou Wang Tong) é um dos mais importantes autores da geração do Novo Cinema Taiwanês embora permaneça bem menos conhecido além fronteiras do que os seus contemporâneos Hou Hsiao-hsien ou Edward Yang. Um bom ponto de partida para a sua obra é Daocao ren (Strawman, 1987), um dos seus filmes mais aclamados.
Tal como outra das suas obras mais conhecidas, Xiangjiao tiantang (Banana Paradise, 1989), Daocao ren centra-se em personagens pouco privilegiadas que, com tenacidade e humor, lutam por sobreviver em situações adversas. Daocao ren centra-se nos irmãos Chen: Kuozui (“Boca Grande”) e A-Fa (“Homem Rico”). O filme passa-se em 1944 numa zona rural em Taiwan, então colónia do Japão. A Segunda Guerra Mundial aproximava-se do seu derradeiro ano e as imposições para sustentar o esforço bélico japonês apertavam em Taiwan. Os dois irmãos são dos poucos homens que sobram na sua aldeia. Evitaram o recrutamento simulando problemas de visão com a ajuda da mãe – e de bosta de vaca. A preocupação imediata dos Chen é dar de comer aos filhos, tantos que nem lhes sabem os nomes. Mas a vida não está fácil. Nos campos os pássaros comem os cereais que plantam, e nem o espantalho parece fazer o seu trabalho. Os japoneses exigem até as vacas indispensáveis à sua actividade agrícola. Bens trocam-se numa economia paralela. A irmã deles enlouqueceu quando o marido morreu na guerra e é com os restos mortais de um soldado que o filme abre (as cornetas militares a serem abafadas pelas dos aldeões, numa das cenas mais curiosas). A guerra não traz coisas boas, e a recompensa, como observa um a dada altura, é pouca: uma medalha e uma bandeira, esta mais pequena que um par de calças. Não há aqui heróis nacionais mas um retrato de gente comum a tentar fazer de tudo para continuar. É um épico de sobrevivência contado através do patético do quotidiano.
Em Dacao ren as imposições crescentes dos colonizadores vão sendo retratadas, com graus variáveis de resistência dos locais. A existência destes rege-se por preocupações mais imediatas do que a busca da glória do império. A colaboração, quando existe, é feita por motivos essencialmente de subsistência. Numa cena uma das crianças chega a casa e informa que teriam de adoptar nomes japoneses. A anuência que se segue não é feita por patriotismo mas por razões mais pragmáticas: quem mudasse de nome receberia arroz branco em vez de castanho. Da mesma forma, depois do professor recompensar com um par de meias um aluno que traz um fragmento de uma bomba americana, as crianças da aldeia decidem ir colocar cestos para receber os destroços quando os aviões de guerra voltam, na esperança de apanharem bombas para uma compensação ainda maior. A cena é representativa do tom tragicómico do filme mas rapidamente é superada pela peripécia central. Quando uma bomba americana cai no campo dos irmãos sem explodir, estes decidem levá-la até ao quartel general japonês mais próximo para receber a recompensa. Após uma jornada peripatética, que inclui um rocambolesco encontro com uma procissão de monges numa ponte suspensa e uma sessão fotográfica com a bomba, são recebidos pelo comandante japonês, horrorizado e furioso. Ao contrário da recepção entusiasta que esperavam, é-lhes ordenado que levem a bomba e a atirarem ao mar. A recompensa, essa, chega pela sua própria acção: ao cair, a bomba explode trazendo à tona centenas de peixes. Os dois irmãos regressam à aldeia proporcionando à família paupérrima um banquete que era impensável dias antes. Num final de momentâneo descanso de agruras, a família reúne-se à mesa enquanto os irmãos se revezam a contar alegremente a sua viagem. Para melhorar, até a venda do terreno pelo primo da cidade, que os deixaria sem nada, é adiada porque os representantes da fábrica e potenciais compradores não aparecem, talvez devido à guerra. Os aviões americanos que anunciam a derrota do Japão são vistos como factor de eventuais benesses pessoais. É um final feliz com um quê de ironia, até porque a deixa é talvez mais sobre Taiwan no pós-guerra que sobre a época em que se passa o filme.
Se se pensar que Daocao ren foi feito no ano do levantamento da lei marcial em Taiwan, o olhar sobre a história relativamente recente da ilha é impressionante pelo sentido crítico que revela, tão criativo quanto incisivo. Aliás, Wang Tung continuaria a abordar a experiência histórica taiwanesa noutros filmes, sempre centrado em figuras, não de elite, mas as que, embora vítimas de opressão, aprendem a viver nesse sistema e a contorná-lo de forma criativa.
A história do Novo Cinema Taiwanês e do legado de perscrutação da história e das gentes de Taiwan que este firmou até à actualidade têm de passar pelos filmes de Wang Tung.
Wang Tung foi director artístico de dezenas de filmes. Não é, pois, surpreendente a atenção dada a certos detalhes, da minúcia dos espaços a aspectos do guarda-roupa (como a farda suada do soldado trompetista, elucidando o calor húmido sentido frequentemente em Taiwan, e que dará azo a um episódio mais óbvio depois). A recriação da experiência (ou memória) do período histórico em que o filme tem lugar é feita com uma subtileza variável mas com resultados muito interessantes. Veja-se o retrato dos parentes da cidade que chegam à aldeia, japonizados na roupa e na língua, em fuga da guerra para a segurança do Japão – a ilusão de tal propósito é evidente para quem sabe o que, de facto, aconteceu. Da mesma forma, as advertências para o que se passaria em caso de uma invasão americana, com os soldados abusando das mulheres locais, são duplamente provocadoras, tanto podendo ser lidas como uma evocação implícita das violações japonesas em vários países asiáticos durante a guerra, como uma referência à presença americana na região no pós-guerra.
Tendo como director de fotografia Mark Lee Ping-bin, colaborador habitual de Hou Hsiao-hsien [no ano anterior assinara a fotografia de Lian lian fengchen (Dust in the Wind, 1986)], Daocao ren tira enorme partido dos elementos naturais em Taiwan, onde quer a vastidão dos campos, os fundos montanhosos ou as chuvas fortes fazem parte integrante da vida. Uma paisagem habitada mas sempre com algo de indomável. Também as cenas nos interiores revelam a preocupação com a recriação de uma ideia de autenticidade, da frugalidade da habitação à ausência de electricidade (os planos à noite são particularmente bons para apreciar o trabalho de Lee). O mesmo se pode dizer do uso da língua, nomeadamente nas cenas que colocam em evidência os problemas de comunicação entre os locais e os japoneses.
Daocao ren é um caso interessante no contexto do Novo Cinema Taiwanês também pelo facto de ter sido um sucesso de bilheteira à altura. Ganhou alguns prémios, nomeadamente o galardões de melhor filme e realizador nos mais importantes prémios de cinema de Taiwan, os Golden Horse Film Awards, e foi bem recebido pelo público. Feito que algum cinema taiwanês actual parece querer emular.
Wang Tung nasceu na China e foi para Taiwan com sete anos durante a guerra civil. Tal como Hou e Yang, é um filho de “continentais” que, nos seus filmes, interroga a história e a experiência humana de Taiwan nos (des)encontros dolorosos. Daocao ren olha para a relação dos taiwaneses com os japoneses subvertendo possíveis leituras politicamente correctas do período colonial. Os filmes posteriores do realizador continuam a abordar a experiência taiwanesa com um olhar original.
O mais conhecido é, Xiangjiao tiantang, que partilha o argumentista com Daocao ren e que, juntamente com Wuyan de shanqiu (Hill of no Return, 1992), é considerado parte de uma “Trilogia Nativista” do realizador. Xiangjiao tiantang segue dois antigos soldados nacionalistas em Taiwan, de 1948 aos anos 1980. Os protagonistas são de novo dois simplórios engolidos pelas circunstâncias. De Taiwan sabem pouco e idealizam-na como um paraíso de abundância. A realidade que encontram é bastante diferente, mas ambos irão sobreviver às vicissitudes quase sem saber como. Um fica traumatizado após ser torturado no período de “Terror Branco”, confundido com um espião comunista depois de ter assumido um nome falso. O outro vive décadas de farsa depois de assumir a identidade de um intelectual que morre jovem a pedido da companheira deste. Mais uma vez, o tom é tragicómico, com cenas que colocam em evidência a estranheza e paulatina adaptação dos dois homens à vida na ilha.
A odisseia de “continentais” à margem na segunda metade do século XX em Taiwan é um tema importante na obra de Wang Tung. Quase dez anos depois, Wang realizou Hong shizi (Red Persimmon, 1997), sobre uma família em Taiwan vinda da China, um filme que merece ser visto em conjunto com Tongnian wangshi (A Time to Live, a Time do Die, 1985), filme de inspiração autobiográfica de Hou Hsiao-hsien. O tema volta em força na sua longa mais recente Feng zhong jiazu (Where the Wind Settles, 2015) que segue o percurso de três antigos soldados nacionalistas e um rapaz que adoptam de 1940 a 2010. Sem grande humor e com um colectivo de actores aquém da tarefa, o filme é, no entanto, um portento de cenografia, um retrato cuidadoso da evolução de locais quotidianos (casa, restaurante, etc.), guarda-roupa e até língua em Taiwan durante as últimas décadas, com um final ambíguo.
Tendo realizado pouco mais de uma dezena de longas-metragens, algumas com intervalos de anos, Wang Tung tem tido uma carreira ligada ao cinema noutras funções, trabalhando em direcção artística e produção, e como professor. Inegavelmente mais comercial do que Hou ou Yang, Wang não teve o impacto destes no cinema mundial e permanece muito mais conhecido em Taiwan do que internacionalmente. No entanto, a história do Novo Cinema Taiwanês e do legado de perscrutação da história e das gentes de Taiwan que este firmou até à actualidade têm de passar pelos seus filmes. Daocao ren é um dos melhores para o explorar.