Nos primeiros momentos de Francofonia (2015) o ecrã divide-se em dois, de um lado branco do outro negro, e o genérico final do filme corre já enquanto ouvimos um contacto entre o próprio realizador e um homem que se encontra em alto mar, o capitão Dirk, e que supostamente transporta no seu barco os conteúdos de um museu. Metáforas possíveis sobre os museus como barcos-contentores amovíveis de arte (é esse um dos temas em questão) à parte, o que me interessa salientar é que, quer o desejo de inversão (o começar pelo fim com o genérico), quer a estática que se ouve na comunicação entre os dois homens dizem mais sobre o filme do que o que está a ser dito. Fica portanto claro deste o início que se trata de um filme-estática, ou cheio de ruído (a grande fonia do título). E com ele um forte desejo de inversão ou perversão.
Em 2002, Aleksandr Sokurov bailou no Palácio de Inverno no Hermitage, na sua Rússia natal, revisitando a história do seu país através dessa dança de um só take chamada Russkiy kovcheg (Arca Russa, 2002). Quase 15 anos passados, agora que se propõe visitar o Louvre para indagar da sua importância histórico-política, não há como não pensar nos seus movimentos de então. Se no referido filme o cineasta se presentificou pela câmara subjectiva que percorria todos os espaços do museu numa afirmação coreográfica que encontra a impassividade do espaço museal, agora esse movimento parece ter-se interiorizado no sentido de uma procura intelectual. Desta forma Francofonia é acima de tudo um filme que nunca abandona uma certa abstracção desconcertante. Mais do que enfrentar a arte contida no mais famoso museu francês, Sokurov deixa que grandes categorias como a vida, a beleza, a arte, pairem como grandes faróis de uma visão ou de um poema nostálgico.
Francofonia abandona o poder da arte (o qual procura elevar) nesse exacto momento em que submete o conteúdo do Louvre ao conteúdo dos pensamentos e da reflexão de Sokurov.
Esse movimento interior faz com que seja a voz off do autor aquilo que fragilmente unifica esse vaguear indistinto, ruidoso, num ensaio, um tanto superficial, sobre a sua visão. Sob o elán da grande arte do passado há pouca coisa que Sokurov não queira explorar. Com a intenção de aflorar todo o passado histórico da instituição, sobretudo durante o período da ocupação nazi, o realizador encena o encontro de duas figuras históricas – o director francês do Louvre Jacques Jaujard, que resiste a desertar da cidade de Pais, e o funcionário no regime alemão, o conde Franz Metternich, responsável por discriminar os tesouros de uma cidade ocupada. Nesse processo usa imagens de arquivo da época, recria a aparição fantasmática de figuras como Napoleão ou Marianne (o símbolo da República francesa que pouco mais faz do que repetir como incessante eco o famoso “liberdade, igualdade, fraternidade”), usa fotografias de escritores russos como Tchekhov ou Tolstoi, pedindo-lhes que acordem do seu sono eterno, trabalha a dimensão metacinematográfica, com referências à própria rodagem do filme, filma-se no seu escritório em reflexão, etc.
Desta acumulação resulta sobretudo esta ideia de que no centro de Francofonia está um homem seduzido por todo aquele universo, veiculando todos os seus sentimentos através de um tactear, ora ficcional, ora documental. Não pode por isso dizer-se, e nisto reside o paradoxo do filme, que a pintura ou a escultura presente no Louvre sejam o seu grande tema. Alguns dos grandes filmes sobre o (ou no) espaço do museu (Russkiy kovcheg incluído) têm esta característica de olhar as obras, dando-lhes espaço para devolver um olhar, sempre incomensurável. Penso por exemplo no Les Statues Meurent Aussi (As Estátuas Também Morrem, 1953) de Chris Marker e Alain Resnais ou no episódio de Viaggio in Italia (Viagem em Itália, 1954) de Roberto Rossellini, no qual Ingrid Bergman visita o museu arqueológico de Nápoles.
Outro filme que não pode deixar de ser comparado com Francofonia é Une Visite au Louvre (Uma Visita ao Louvre, 2004) de Jean-Marie Straub e Danièle Huillet. Nele, além do confronto, cara a cara, com algumas das obras (os planos dos quadros são quase sempre frontais, com uma voz off feminina que, “dando presença” a Cézane, investiga os pinturas dando-lhes a elas a possibilidade de suprirem o movimento que a câmara dos realizadores, propositadamente, nos nega), surge a dada altura a ideia de que a psicologia na pintura é apenas e tão só a junção de duas cores e que se nos deixamos levar por uma anedota ou assunto um quadro corre o risco de nada significar. Ora, Francofonia abandona o poder da arte (o qual procura elevar) nesse exacto momento em que submete o conteúdo do Louvre ao conteúdo dos pensamentos e da reflexão de Sokurov.
Não por acaso o filme do russo ensaia um movimento inverso ao de Straub/Huillet. No primeiro, o Louvre é “vendido” como um símbolo da humanidade, continente-contentor que resiste às ondas do poder e da guerra. É portanto nele que Sokurov, fascinado por Paris (como o demonstra os planos aéreos sobre as ruas da cidade), quer, a todo o custo, entrar. Já no segundo não há como não dele sair. Como esquecer que após quase uma hora de comentário sobre a infindável beleza da pintura, nos seja dito, a propósito do génio de Courbet: “Quem aprisionou Courbet nesta caverna? Deixem regressar esta tela à luz. Deixem que ateiem fogo ao Louvre!” E se não é com o fogo é com a natureza que terminamos: as plantas, os pássaros, a água e claro… o movimento de câmara.