Ghostbusters (Caça-Fantasmas, 2016), ou melhor, este novo Ghostbusters tem gerado uma onda de indignação junto do público que cresceu a ver o original de 1984. Um verdadeiro motim cibernético deu origem a uma série de equívocos. A liderar o descontentamento tem estado essa sub-espécie algo sinistra do crítico de cinema chamada “crítico cultural”. Quem é ele? Parece-se com a personagem do céptico que aparece neste Ghostbusters e que é interpretada – sulfurosa auto-ironia! – por Bill Murray. Ele é alguém tão avesso à diferença quanto incrustado às suas convicções. Ou alguém que só sobrevive dentro de uma bolha cultural feita mais das equações triviais que rodeiam os filmes do que de cinema propriamente dito. A sua análise está ao nível de um muito mal jogado “jogo das diferenças”. O seu olhar não se prende ao que é diferente, mas ao que permanece igual. O facto do novo filme ser protagonizado por mulheres e não por homens foi a faísca que originou esse incêndio que consumiu o filme mesmo antes da sua estreia. “How dare you!” – esta foi a exclamação mais dita por esses paladinos da cultura que cegamente atacaram a mais recente comédia do ousado Paul Feig. Paradoxalmente, lamento agora eu após ver o filme, constato que talvez tenha faltado ao filme exactamente isso: mais Feig, leia-se, mais ousadia.
Não me interpretem mal: a minha infância também foi marcada pela descoberta em VHS do primeiro Ghostbusters (Os Caça-Fantasmas, 1984). Vi-o dezenas de vezes, até a fita não aguentar mais. Portanto, sim: percebo perfeitamente o culto. Mas este deve ser balizado e até contido – à maneira dos próprios caça-fantasmas ante a ameaça ectoplásmica no filme? Exacto! Porque, convenhamos, revisto hoje, este filme não sobrevive muito para lá dessa memória aprazível – de espanto e, até, de choque – vivenciada nos tempos remotos da nossa infância cinéfila, da nossa infância VHS. De facto, o trio Harold Ramis-Dan Aykroyd-Bill Murray continua divertido, mas o resto é uma algo aparvalhada colecção de situações fantásticas, resolvidas com um, diria, “excesso de imaginação”. Talvez Ivan Reitman estivesse demasiado deslumbrado com o brinquedo que tinha em mãos, tendo transformado a empreitada num vistoso suporte para alguns dos mais sofisticados efeitos especiais da altura. Não são só os efeitos que estão datados, há um descontrolo sobre as histórias – e a mitologia das suas personagens – que se sente passado poucos minutos. Reitman tem muita pressa em chegar ao “momento seguinte”, pelo que que acabamos por usufruir pouco da coabitação cómica dos nossos heróis; da sua camaradagem em torno de um métier singular: caçar fantasmas.
Independentemente de o primeiro filme sair ou não beneficiado da devida reavaliação, é preciso deixar claro: não faz sentido algum o excesso de proteccionismo em torno do filme original. Talvez o excesso de proteccionismo dessa multidão de indignados se deva a uma concepção reaccionária da cultura. As “massas” habituaram-se a remakes, até a reboots, mas não a reconversões tão radicais como esta. Mas será que esta versão feminista de um franchise de sucesso é exactamente isso, isto é, uma reconversão? É aqui que reside a inteligência maior da proposta deste novo filme. Como se lê nos créditos finais, este Ghostbusters foi “baseado no filme de 1984”. Eu diria até que, antes de uma reconversão ou de uma adaptação, se trata de uma apropriação de um universo cultural/mitológico por um universo cinematográfico ainda em construção. O facto dos dois filmes terem o mesmo título é apenas o princípio de uma grande artimanha cultural. Esse universo cinematográfico que se propõe esmagar a cultura é o de Paul Feig, realizador que se tem especializado em comédias de mulheres que têm procurado desfazer barreiras no que diz respeito à convicção sobre a potência feminina de produzir comédia.
Estamos à beira de um grande blockbuster feminista, que dinamita a cultura em nome da continuação de um universo cinematográfico que é radicalmente estranho ao franchise em questão.
Feig pega, então, no original Ghostbusters, rouba-lhe a premissa e mais alguns apontamentos, para, depois, simplesmente continuar a desenvolver o mesmo tipo de personagens que podemos encontrar nos seus filmes anteriores. De Bridesmaids (A Melhor Despedida de Solteira, 2011) regressa Kristen Wiig, de todos os seus três filmes anteriores, incluindo The Heat (Armadas e Perigosas, 2013) e Spy (2015), salta a sua musa cómica, a Mae West do século XXI, a graciosamente corpulenta – com pimenta na ponta da língua – Melissa McCarthy. As duas trazem consigo o pace cómico de Feig, composto por boas doses de comédia física e uma divertida dissonância discursiva entre as personagens. Enquanto os “críticos culturais”, de tochas em punho, perdiam tempo com condenações a priori do filme, por este não se apresentar como uma minuciosa réplica do título original, Feig “limitava-se” a seguir em frente, tratando o invólucro cultural chamado Ghostbusters como um novo décor para o seu cinema; não como o texto, mas antes como o pretexto ideal para re-lançar as suas personagens. Na realidade, várias são as situações no filme em que se gera uma espécie de “piscares de olho” cruzados, em que o espectador reconhece um “actor Feig” – Michael McDonald, anyone? – quase ao mesmo tempo em que é surpreendido por uma referência mais ou menos óbvia à mitologia Ghostbusters.
Sem prejuízo para todas as qualidades cómicas que transitam dos filmes anteriores de Feig para aqui – sublinho isto: Kristen Wiig é um prodígio cómico que dá esperança a todos os que ainda acreditam no potencial da comédia física -, a verdade é que acabei por sair da sessão desiludido. Desiludido não por causa de um qualquer desrespeito por esse filme menor que é um dos clássicos maiores da minha infância – não me prendo a estes saudosismos – mas, bem pelo contrário, pelo facto de esse exercício de apropriação não ter ido ainda mais longe.
Hélas! Nessa luta entre a cultura – representada pela desconfiança populista que acabou por ser anterior ao próprio filme, ainda que este, não ingenuamente, a tenha antecipado in rebus – e o cinema – o de Feig e o da linguagem cómica, idiossincraticamente feminista, que o caracteriza -, acaba por vencer a cultura. Os tais “piscares de olho” que tanta gente ansiava acabam por levar a melhor no tecido dramático do filme, contendo, deste modo, a sua disruptiva força feminista. É de aplaudir a ideia de transformar a clássica figura da secretária que tem mais “legs” que “brains” num assistente, burro que nem uma porta, que é só “looks”, interpretado por nada mais nada menos que Chris “Thor” Hemsworth. A ideia está lá, mas a agudeza cómica nem sempre a acompanha – o filme, no seu todo, não está longe de ser assim.
Estamos sempre à beira do tal grande blockbuster descomplexadamente feminista, que dinamita a cultura em nome da continuação de um universo cinematográfico (não há que ter medo da palavra: “de autor”) que é radicalmente estranho ao franchise em questão. Infelizmente, ficamo-nos só à beira de… Faltou a Feig ter a ousadia de dar mais um passo ou dois, abalando por completo as fundações ou assumindo o fenómeno cultural como máscara vã para o seu cinema carregadinho do melhor estrogénio. Enfim, fica pouco mais que apenas a intenção de dar a volta ao “texto” e às expectativas dos mais acomodados. Desiludiu, mas não me queixo: a mera sugestão de dar a volta aos “ditados” da cultura faz deste Ghostbusters uma inteligente proposta de cinema pipoqueiro ou, muito simplesmente, um salutar Feig menor.
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[…] écrit leur journaliste, Richard Roeper. « Les effets spéciaux sont datés » estime également Luis Mendonça, du site de critique portugais À pala de Walsh. Il tient en revanche à saluer le pied de nez fait aux sexistes […]
[…] écrit leur journaliste, Richard Roeper. “Les effets spéciaux sont datés” estime également Luis Mendonça, du site de critique portugais À pala de Walsh. Il tient en revanche à saluer le pied de nez fait aux sexistes […]