Um passarinho do mundo cinéfilo confidenciou-nos que, nos Encontros Cinematográficos do Fundão de 2015, o Andrea Tonacci afirmou aque aquela era a segunda vez que o convidavam para ir apresentar a sua obra fora do Brasil. Não sabemos se tal era um facto consumado se uma ligeira hipérbole, mas o que podemos garantir, de certeza, é que o cineasta nascido em Roma mas brasileiro de adopção, está longe, muito longe de se apresentar como nome na língua de quem está pronto para enumerar os seus realizadores prestigiantes e festivaleiros de hoje em dia. Se juntássemos no mesmo local todas as pessoas do mundo que já viram pelo menos um dos seus filmes, então poderíamos proceder à construção de uma daqueles cidades do velho oeste, com o seu ferreiro, o seu barbeiro, o seu saloon e o seu banco prestes a ser assaltado.
Olho por olho (1966), a sua curta-metragem de estreia, chega dois anos após a instauração da ditadura militar em território brasileiro, prefigurando o movimento cinematográfico denominado “Cinema Marginal”, que, segundo as nossas apuradas investigações, durante quase uma década andou a – parafraseando Luís Miguel Cintra nas Recordações da Casa Amarela (1989) – “dar trabalho” às autoridades e públicos brasileiros, numa libertinagem ideária e cinematográfica sem, talvez, qualquer paralelo a nível mundial, mesmo que estivéssemos a viver a época de glória dos chamados “cinemas nacionais” ou “terceiro-mundistas” e respectivas idiossincracias anti-sistemas (económicos, culturais, imperialistas, formais, etc). Mas este Cinema Marginal parecia ir além, colocando em questão não só a ordem como a tentativa de desordem estabelecidas, ultrapassando os nobres desejos do querido inimigo Cinema Novo em “modificar o mundo, vamos lutar contra as injustiças!”, impondo, então, o seu (não) programa anárquico, surreal, transgressor e até cartoonesco; a preto e branco e “destruindo” a linguagem cinematográfica, lá iam Tonacci, Rogério Sganzerla (que monta Olho por olho) ou Ozualdo Candeias semeando “altas confusões”, como diria o narrador da “sessão da tarde” da Globo.
Na senda das patifarias godardianas, há um batalhão de momentos desrespeitosos para com os academismos da actividade cinematográfica, mas com um aroma de amadorismo que transmite uma genuína e afectuosa candura.
“Que vamos fazer esta noite?”, pergunta um dos indivíduos, e outro responde “Nada, para variar”. Três amigos dentro de um carro à procura não se sabe bem do quê. Apáticos, nihilistas, estrebuchando de vez em quando frases arrastadas e desencantadas. A juventude da classe média brasileira dos anos sessenta, altamente individualizada e ignorando as pretensões de um “mundo mais justo”. Leu-se, algures, que as personagens de Olho por olho podem equivaler-se às do A Clockwork Orange (Laranja Mecânica, 1971) na sua violência indiferente, com a pequenina e substancial diferença dos homens de Tonacci estarem bem enraizados num clima espacial e temporal bem definido, ao contrário dos delírios ficcionais de Burgess e Kubrick. Entra uma femme fatale no carro e suspeitamos que irá haver bordoada das grandes.
Notícias da actualidade de 1966 (Vietname, assassínios, propaganda política…) passam na rádio para serem logo interrompidas pelo avanço de músicas populares; não há paciência para o mundo, não se sabe o que fazer com ele. Os três apolíticos e sua amiga estão mais interessados em providenciarem para si mesmos uma tarde descontraída a dar cabo do físico a outros “inocentes” da população brasileira. “Deixa ver o jornal”, “Não há nada aí, não”. Isto em vésperas do “Verão do amor” alguns quilómetros mais a sul. Em Olho por olho, o verão é violento, não amoroso ou floreado.
Mas para lá desta vagabundagem sem sentido, registamos o impressionante registo documental da curta de Andrea, havendo momentos em que as personagens são quase ignoradas para se mergulhar nos ritmos diários de São Paulo, através da lente de um road movie urbano. Na senda das patifarias godardianas, há um batalhão de momentos desrespeitosos para com os academismos da actividade cinematográfica, mas com um aroma de amadorismo que transmite uma genuína e afectuosa candura. Olho por olho é daquele tipo de obras cuja restauração digital ou coisa semelhante deveria estar proibida por lei constitucional.
“É preciso acabar com esta palhaçada”, “Precisa é de mudar tudo”. Sim, mas não sabemos é como, e já lá vão mais de cinquenta anos. Também não muito inalterado tem permanecido o estatuto de Andrea Tonacci na história do cinema. Não sabemos as razões nem queremos saber. Os filmes estão por aí, para quem os quiser ver. Com uns dinheiros de herança, talvez fundemos um festival “do cinema”, cujo primeiro (Super) Herói Independente será Tonacci. Até lhe comprarei uma capa. E o cineasta poderá, na altura, afirmar que “esta é a terceira vez que me que convidam para mostrar filmes meus fora do Brasil”.
https://www.youtube.com/watch?v=aYQBiiqUO-E