O À pala de Walsh chora a morte de Abbas Kiarostami, um dos maiores realizadores dos nossos dias. Cinco walshianos reúnem-se para deixarem o seu muito sentido adeus.
A sensação com que fiquei depois de ver Khane-ye doust kodjast? (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, 1987), é que nunca mais os meus olhos meditariam um filme tão simples e tão majestoso. Abateu-se uma tristeza obstinada, como se amaldiçoasse aquele que, sem nada fez o tudo, e que com esse tudo me tinha deixado a pensar que mais nenhum filme com e sobre crianças me iria maravilhar assim. Tinha acabado ali a vontade de procurar rostos infantis, uma das minhas paixões cinematográficas, que acicata o espírito de coleccionadora: Bogey (The River), Isamu (Ohayo), Pascal (Le ballon rouge), Claude (Le vieil homme et l’enfant), Kajal (Apur Sansar), Antoine Doinel (Les quatre cents coups), Skeeter (Good-bye, My Lady), John e Pearl Harper (The Night of The Hunter), o menino do Louisiana Story (1948)… E depois chegou Ahmed, deste Onde Fica a Casa do Meu Amigo? e baralhou a colecção, ou, pelo menos, deixou pairar uma pontuação – final, exclamativa ou interrogativa. A morte de Abbas Kiarostami teve o mesmo sentido de pontuação, uma espécie de “depois disto mais nada”. O medo que se cola ao rosto de Ahmed, por ter o caderno do amigo, e não conseguir encontrar a sua morada para lho entregar, é o medo que nos acompanha também agora, nesta noite repentina que se fez no cinema, em que procuramos desesperadamente moradas tão seguras como era a de Kiarostami.
Inês Lourenço
Antes de ser um apreciador do cinema de Kiarostami, já tinha dois apreciadores em casa. Os meus pais tinham um cassete VHS inglesa d’ Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1997) (penso que a minha mãe a trouxe de Londres quando lá estagiou, teria eu uns 8 ou 9 anos), cuja capa e sinopse me foram intrigando à medida que fui crescendo, no início um elemento puramente excêntrico para uma criança (um filme do… Irão?! Onde fica o Irão, mãe? Como são as pessoas lá?), depois um farol cinéfilo e indicador de que havia todo um “outro mundo” à minha espera, o mesmo no qual mergulhei definitivamente quando encontrei o Cineclube da Faculdade de Direito (para cuja programação uma colega minha escolheu mesmo o filme em 2012) e onde, aliás, me lembro de ouvir alguém (penso que foi o Pedro Ramires, cinéfilo da Faculdade de Economia e nosso fiel espectador) a citar pela primeira vez a famosa – e mal-entendida – frase do Godard de que o cinema tinha “morrido” com o Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990).
A segunda recordação mais nítida que tenho do Kiarostami é, novamente, familiar: no Verão de 2010, enquanto estudava para os exames, ouvia o meu pai no quarto, na sala ou à janela a entoar dramaticamente: “SHIRIN… SHIRIN… OH SHIRIN…!”. Lembro-me de a minha mãe chegar a casa e já estar pelos cabelos quando o meu pai a saudava dessa forma. Como acontece muitas vezes, a paixão do meu pai com o Shirin (2008) levou-nos a todos ao antigo Cinema Nun’Álvares (o meu pai viu o filme cinco vezes só durante o tempo em que esteve em exibição nas salas), momento em que também eu me apaixonei (não com o grau de obsessão do meu pai, ainda assim). Não sendo um conhecedor profundo da sua filmografia, a minha relação com Kiarostami é, por isso, e antes de mais, familiar, afectiva e afectuosa, bem condizente, de resto, com a extrema sensibilidade e delicadeza dos seus filmes e das suas personagens. Entre os cinéfilos, há aquele velho lamento/desejo de voltar atrás no tempo para poder ver determinado filme novamente pela primeira vez (para se apaixonar pela primeira vez, tal e qual como no amor por uma mulher); por isso, numa hora triste como esta, um pequeno oásis de alegria lembra-me que ainda há muitos filmes dele que tenho para descobrir.
Francisco Noronha
Se não há vez como a primeira, então, em relação ao Abbas Kiarostami, tenho obrigatoriamente de referir Ta’m e guilass (O Sabor da Cereja, 1997), o filme que lhe valeu a Palma de Ouro. Primeira vez tanto como conhecimento da existência de um cineasta chamado Kiarostami, nas páginas do suplemento cultural do Público de um qualquer dia de 1998, data da estreia do filme por estas bandas, como primeira vez de introdução ás imagens e sons do iraniano, não muito tempo depois, numa época em que ele, juntamente com os Kitanos, os Costas, os Kar Wais, os Tsai Mings, os Sokurovs, etc, começaram a entrar nas nossas vidas, não necessariamente substituindo, mas antes complementando os Stallones, os Dudikoffs, os Van Dammes, os Lundgrens e assim sucessivamente. E se será subjectivo (tanto como inútil) classificar quantitativamente o lugar de Ta’m e guilass na obra de Abbas, já é bem objectivo que foram as suas impressões que mais se grudaram na memória que temos da colectânea de filmes do iraniano (pronto, excluindo os últimos dez minutos do Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990), que fazem parte de um universo paralelo). Os sons dos pneus na terra batida, os planos gerais e longuíssimos de um jipe em paisagens desérticas, os diálogos sempre imprevisiveis (genial escritor, Abbas), os cortes inesperados, técnicas concretas que depois produziriam uma estranha sensação de hipnotismo, ou não estivéssemos a falar de um realizador que adorava “filmes para dormir”.
Mas se a languidez permanecia intacta, tal não significava a ausência de qualquer coisa de aterrorizante nos seus filmes. Ta’m e guilass, Close-Up, as suas curtas iniciais, a “trilogia das oliveiras”, para lá da já sua mil vezes debatida questão de esbatimento de barreiras entre ficção e documentário, eram um rigoroso fabrico de histórias com uma nada dispicienda parcela de tensão, extraindo um inesperado suspense de triviais acontecimentos quotidianos. A jornada épica do menino de Khane-ye doust kodjast? (Onde É a Casa do Amigo?, 1987) não é outra coisa que um filme sobre a ansiedade sub-12 versão iraniana, e o grande plano do rosto de Homayoun Ershadi em Ta’m e guilass, entrecortando a total escuridão com os breves lampejos de relâmpagos, é uma das mais belas e ferozes demonstrações de solidão na “história do cinema”. Cinema que tanto pode fazer estremecer uma criança de dez anos como deixar de boca aberta um académico de Harvard, pronto para escrever um testamento de quinhentas páginas sobre o significado da cor do vestido da Rin Takanashi no Like Someone in Love (2012). Agora que chegou a sua hora, vamos rezar á sua memória da única forma que sabemos: a rever os seus filmes.
Tiago Ribeiro
Kiarostami construiu em Copie conforme (Cópia Certificada, 2010) um casal do nada, como qualquer outro ficcionista, só que, ao contrário de qualquer outro ficcionista, este admite a falsidade da sua criação, conferindo por isso uma certa coerência ao casal, tornando-o, por mais estranho que pareça, em algo mais natural. A forma como dois desconhecidos, em poucos segundos, passam a ter 15 anos de relacionamento é de tal forma inesperada que o resultado podia ser risível (e é-o em vários momentos, mas por outros motivos), mas Kiarostami montou a filigrana de uma relação com toques de relojoeiro, infectando o casal de passado, de memórias comuns, criou uma mitologia relacional e isso é profundamente belo – e é aí que reside uma das grandes maravilhas do seu cinema. Este filme, como muitos outros, parece feito em tempo real, as pessoas entram e saem de museus, cafés, hotéis e carros. Ele faz os seus habituais travellings de carro, escreve diálogos leves e pesados sobre as complicações do matrimónio e sobre a importância da cópia na produção artística. Tudo em cadeia, como se fosse fácil e óbvio brindar-nos com discussões tão dispares e cativantes. Mais do que uma viagem (a Itália), os seus filmes são um passeio (com óptima companhia). Mas uma das teses deste filme (e podia ser de qualquer outro) é que são as pessoas e as coisas mais simples as mais belas e tocantes – e menos as artimanhas do ficcionista que a compõe na tela. Como os ciprestes, que são antigos e belos, e nos dão a sombra no caminho. Nestes dias os ciprestes choram a morte de Kiarostami, assim como todas as coisas simples e belas do mundo.
Ricardo Vieira Lisboa
Será que disse tudo o que tinha a dizer aqui, neste texto que escrevi para o Expresso online ainda na ressaca de saber que o cinema já não podia ficar o mesmo depois do desaparecimento deste monumental cineasta? Disse tudo e não disse nada. A imagem que aqui trago também diz tudo e também não diz nada. Como conseguir sair dela, neste momento em que se celebra um cineasta que fez dos gestos pequenos da vida um espaço para a mais alta e nobre reflexão sobre o Homem e o Tempo? Continua a não me ocorrer melhor metáfora para a vida – e para a morte – que aquela imagem do aerossol, que a câmara de Kiarostami pacientemente captura, a rodar até ao fim da rua. É em Nema-ye Nazdik (Close-Up, 1990), provavelmente a sua obra mais emblemática – não sei se a melhor, mas, seguramente, aquela da qual não podemos fugir se queremos conhecer Kiarostami -, que aquela lata que gira, esquecida, no asfalto, desenhando um percurso que ninguém pôde controlar. Que movimento tão preciso e tão impreciso, ao mesmo tempo! Que imagem tão insignificante e tão poderosa! Só os grandes descobrem tanta coisa em gestos – e coisas – tão simples.
Luís Mendonça