Os walshianos Luís Mendonça, Ricardo Vieira Lisboa e Sabrina D. Marques prestam a sua pequena homenagem a um dos realizadores mais incompreendidos da sua geração: Michael Cimino.
É uma história à americana: um dos mais auspiciosos realizadores da sua geração é ceifado pela indústria que o criou. Depois de The Deer Hunter (O Caçador, 1978) parecia, de facto, que “In principle, everything is possible”. Esta frase, repetida várias vezes no monumental Heaven’s Gate (As Portas do Céu, 1980), parece conter, in nuce, a proposta que conduziu o movie brat Michael Cimino até ao inferno. Elevando um filme que queria juntar os mais ambiciosos realizadores da história do cinema americano, Griffith, Welles e Ford, Cimino acabou vítima da sua própria ambição, num universo onde cada dólar perdido pesa. A sua obra-prima eclipsante custou cerca de 45 milhões e só gerou pouco mais que um milhão. A United Artists ficou reduzida a cinzas. Cimino mal sobreviveu, ainda que tenha assinado filmes que se tornaram objectos de culto entretanto, tais como Year of the Dragon (O Ano do Dragão, 1985) e The Sunchaser (Espírito do Sol, 1996).
Para trás ficou um infindável rol de sonhos e projectos por realizar. A última imagem que Cimino deixa no cinema é um regresso às raízes: uma homenagem aos Lumière aquando da celebração dos 120 anos da sua, como chegaram a apelidá-la, “invenção sem futuro”. Cimino foi um dos realizadores convidados que recriaram o primeiríssimo dos filmes, La sortie de la usine Lumière à Lyon (1895) . A sua versão desta “saída” é significativa: os “operários” saem da fábrica a correr, sendo que, entre eles, está o próprio Cimino, que assim se filma a si mesmo como um operário que se precipita, ansiosamente, para um qualquer “fora de campo”. O passo acelerado parece materializar o desejo, para sempre adiado, de fazer um filme com o fôlego dos seus primeiros. Talvez no “lado de lá” Cimino tenha visto a serem projectados o seu western na lua, a sua obra-prima sobre os Descobrimentos portugueses, o seu ambicioso remake de The Fountainhead (Vontade Indómita, 1949), estes e todos os outros filme que aqui, neste lado da vida, acabou por não conseguir realizar. Ao vê-los do lado de “fora”, ele corre. O operário precisa de trabalhar. Se não na terra, pelo menos no Paraíso.
Luís Mendonça
O meu Cimino favorito é The Sunchaser, um filme que, em primeiro lugar, é sobre o direito à crença face à inevitabilidade mortal. Porque a ciência tem limites, a fé do adolescente de ascendência navajo dedica-se a ensinar ao médico o que este nunca poderia ter aprendido em Harvard. E se a tragédia não poupa nem os mais jovens, parte precisamente do mais jovem essa passagem de testemunho. Nada é forçado. Afinal, o médico que descrê também conhece os limites das próprias mãos: não há quem não tenha perdido gente. Este é um road movie tornado western. Saímos da civilização num muscle-car roubado e, à procura do eixo do mundo, vamos ao encontro dos poderes da Natureza. O horizonte do sunchaser é uma Montanha Mágica, numa alegoria à seminal obra em que Thomas Mann medita sobre a fragilidade dos contornos que separam vida, doença e morte. Abandonamos a civilização pela natureza e atravessamos o cenário do oeste quintessencial – Monument Valley – para enfrentar o abismo dos corpos. Se tantas vezes dispensávamos a verborreia descritiva, que prossegue entre ilustrações que amputam o filme da sua potência contemplativa, vemos manter-se a concentração nessa vontade de ser tão universal como a narrativa em que tudo se funda. É um filme ritualístico que descreve uma jornada espiritual e nada há de mais transversal do que a duplicidade vida/morte, afinal o princípio orientador de tudo o que é Natureza. Ainda assim, sempre a dor: a finitude é um peso a aliviar. Um dos temas centrais da Montanha Mágica é o Tempo, conceito que Mann reflecte enquanto examina a escala humana, enunciando que é como se ‘‘tocássemos a mesma nota ao longo de uma hora a fio e lhe chamássemos música’’. Esta é uma dupla questão que, por um lado, endereça a insignificância de um período histórico face ao reconhecimento da passagem das eras e que, por outro, incita o Homem a assumir a necessidade de se tornar do seu Tempo, através de algo como um exercício somatório das eras.
A essência deste filme decorre, precisamente, do confronto entre duas inteligências que, equiparadas ao disputar pontos de vista, estão simultaneamente a questionar sistemas de conhecimento e a desconstruir uma ideia de progresso baseada na evolução cronológica e técnica. Se o quadro racional do médico procura provar a sua postura com argumentos científicos, a fé do jovem transporta a força mágica dos mitos e das lendas, saberes de origem ancestral. No fundo, a curva deste filme dá-se sobre o reconhecimento da derradeira inutilidade de uma visão útil da vida. Ou seja, por mais absurda que seja uma crença, esta terá direito ao lugar dentro de cada sujeito porque este é inevitavelmente mortal – e a natureza do saber será sempre avançar no sentido de melhor tratar o corpo e a alma, inextricavelmente. Tudo é afinal sunchasing, numa alegoria para o infinitamente inalcançável sentido da vida. Quando o jovem já sabe para quando esperar a morte, todas as estradas são legítimas. A sua chegada a esta Montanha Mágica equivale a um rito de passagem – uma saída do mundano e uma entrada no que há para lá dos limites do visível.
Uma viagem tão tortuosa pelo árido, pelo selvagem e pelo desértico acaba a alcançar o destino que, até aí, se suspeitava impossível. O embate com a Natureza acontece à flor-da-pele e o que ataca também salva. The Sunchaser tem o subtexto material de qualquer bom western, precisamente lembrando como existir é, em primeiro lugar, sobreviver, mas que a tarefa constitutiva do sujeito humano é superar-se e almejar mais do que a supressão das necessidades da sua condição animal. E esta irradiante Natureza que tanto é agente indispensável da sobrevivência como enunciado espiritual, serve igualmente o índio e o branco, o velho e o novo, o crente e o descrente. A Montanha Mágica é a figura literal dessa potência inefável onde encontramos um princípio de perfeição natural, assim apresentando em The Sunchaser uma refundação de traços prévios do autor.
Se Michael Cimino se habituou a largar os seus protagonistas na encruzilhada interior que aproxima o espectador do drama humano que testemunha, nunca parecia sobrar à Natureza qualquer possibilidade de dimensão espiritual. O filme Heaven’s Gate estabeleceu-se como um dos mais brutais atentados à condição animal da história do cinema, alegadamente matando galinhas e sangrando cavalos para recolher sangue para caracterizar os actores e fazendo explodir um cavalo para uma cena de batalha que nem chegaria a ser incluída no filme. Também pelas mãos de Cimino, vimos veados cadavéricos reais em The Deer Hunter a morrer em close-up, nalguns dos planos mais obscenos que já se filmaram. As mesmas vias tortas que me afastam de Cimino, forçam-me a agradecer-lhe por ter caído em crueldades tão ostensivamente gratuitas que abriram os olhos a Hollywood e fizeram surgir a Lei de Protecção dos Animais no Cinema, que regula desde então a forma como estes são tratados. Se um dos emblemas do western é a demonstração da elevação do homem para lá da sua dimensão animal, também será sempre por isso que o género western é sobre a constituição moral – e, para o homem moral, a violência só é justificada por um princípio de justiça. Não há qualquer legalidade em destruir vidas por espectáculo e é por isso que não restam dúvidas: The Sunchaser é o melhor western de Cimino.
Sabrina D. Marques
Sobre Michael Cimino disse Serge Daney: “A ambição de Cimino nunca foi pequena. Dar aos outros e a si próprio o sentimento de tudo começar do zero. Como se o cinema nada tivesse ainda mostrado e como se não se tivesse visto ainda nada. Verdadeira ambição de cineasta“. Nem mais. Um cineasta como Cimino é um que toma o cinema como objecto de refundação de um pais, de uma nacionalidade, de uma sociedade, da humanidade. Esta compreensão pessimista da pátria americana valeu-lhe a glória e a desgraça; Heaven’s Gate foi a desgraça, custou perto de 45 milhões de dólares e conseguiu apenas 1 nas bilheteiras. Foi o filme que levou a United Artists à falência e transformou em besta o bestial realizador. Filme truncado pelos estúdios (para tentar minimizar os prejuízos) é um desses que só agora se vê na versão restaurada e estendida, a dita e afamada director’s cut.
Porque o tempo tudo cura, vê-se agora a bisarma em estado puro. E mais que os revisionismos do oeste ou a perspectiva negativista, o que me espanta (mais que tudo) neste filme é a sua capacidade de passar do geral ao singular e de fazer o trajecto em sentido contrário — sempre nos limites do excesso —, balançando entre o épico histórico e o épico romântico. Cimino percebeu que só se pode filmar o horror (e ele filma-o sem pejo) se podermos primeiro lavar a vista com candura. Para isso veja-se a cena da valsa logo a abrir o filme – alegria a brotar do ecrã a rodos – que faz um raccord simbólico com a batalha final, também ela em constante movimento circular – o horror a rodos. Todo o filme vive nessa corda bamba em constante rotação: a cidade e o comboio com os seus barulhos e fumaradas e confusão (e centenas de figurantes) a par do campo e das montanhas na sua calma bucólica; cada um destes territórios é infectado pelo outro, até que no final já não há terra que valha a James, só o mar o pode ainda acolher. Há filmes assim, sai-se da sala e estranha-se as coisas cá fora, lamenta-se que o projector tenha parado e que só nos reste voltar para casa e viver a nossa vida. Heaven’s Gate é um filme assim e quem o fez só pode ser tão grande quanto o filme. Cimino deverá continuar a girar, como os cavalos e os bailarinos, ao som do matraquear da película nas calhas e dos DVDs nos leitores. Play it again.
Ricardo Vieira Lisboa
Heaven’s Gate é projectado no próximo sábado, no Cinema Ideal, às 15h30. Mais informações aqui.