O escuro – elemento mitológico que, desde tempos ancestrais, perturba os homens, que desde a infância nos incomoda, que, na sua “estranheza” (como Freud cunhou o termo no célebre texto Das Unheimliche, de 1919), nos fascina e assusta (a começar pelo escuro da sala de cinema), que, inclusivamente, serviu para dividir alguns séculos da civilização ocidental em dois (a Idade das “Trevas” e o Século das “Luzes”, separação de um maniqueísmo paradigmático). Ora, a escuridão é a massa de que se faz todo o filme do sueco David F. Sandberg, que aqui prolonga, com a maior duração e profundidade que a longa lhe permite, o argumento da curta-metragem com o mesmo título com que deu nas vistas em 2013, e a qual terá chamado a atenção de James Wan, o homem-do-momento do cinema de terror que assume as rédeas da produção.
Fazendo um paralelismo com outro “campeonato” – o do thriller psicológico, se bem que não tão vincadamente “de género” – do cinema americano mais contemporâneo e geracionalmente saído das mãos de homens na casa dos 30, somos tentados a dizer que, da mesma forma que os cineastas debaixo do guarda-chuva da Borderline Films (Antonio Campos, Sean Durkin, Josh Mond) partilham, mais do que aspectos formais, toda uma matriz programática (a América, sua história, psique, mitologia: a família, a chegada à vida adulta e a solidão, o materialismo, a violência e as armas, etc.), também se pressente uma certa “linhagem” comum ao realizador e ao produtor de Lights Out, sendo a “família” – i.e., o “valor família” – o ponto de ligação entre uns e outros. Além do domínio e aplicação sofisticada de uma vasta gama de recursos técnicos (movimentos de câmara, enquadramentos, profundidade de campo, ritmo dramático, este último especialmente importante no género em causa), Sandberg e Wan partilham, no campo do terror onde laboram, a preocupação com o lugar e a importância da família – e, sobretudo, com o seu risco de desagregação. Risco, esse, potenciado por acção das “figuras de terror” – figuras, neste sentido, “anti-familiares”, porque empenhadas em “destruir lares” e relações de sangue –, verdadeiras forças “do mal” (a família estável e unida como representação, ao invés, do “bem”) cuja materialização concreta é o que menos interessa, podendo aparecer sob a forma de “espíritos”, fantasmas ou outras criaturas mais ou menos sobrenaturais (curiosamente, nunca são humanos, serial killers por exemplo, os agentes do terror e da fragmentação familiar). Foi assim em Insidious (nos três tomos) e em The Conjuring (dois tomos, neste caso) de James Wan (e até na oitava sequela que este assinou para a saga The Fast and The Furious, a “questão familiar” é central, ainda que pindericamente tratada) e é – quanto a nós, de forma ainda mais interessante – no filme de Sandberg.
Se é redundante afirmar que, num filme, luz e sombra estão em permanente dialéctica, em Lights Out, tal dialéctica assume uma dimensão intra-diegética.
“Stay in the light!”, diz Rebecca (Teresa Palmer) aos polícias que tentam, ingloriamente, ajudá-la a ela e ao seu pequeno meio-irmão Martin; “Please just let the lights go out!”, implora, ao invés, Sophie (mãe de Rebecca) ao mesmo Martin quando o tenta convencer da bondade de Diana, a criatura indesejada. Logo por estes dois diálogos se intui a basta matéria cinéfila que temos em mãos para explorar a ideia-de-terror central do filme e, sobretudo, para cruzá-la com aquela que é uma das quintessências do cinema, a saber, a Luz (ou, se quisermos, a iluminação). É na escuridão que o fantasma de Diana – outrora uma criança com uma rara e extrema sensibilidade à luz (e de quem nunca vemos o rosto senão na sua versão “fantasmática” e, por isso, deformada) – assome e mata (é no escuro que o Mal se manifesta), e é na luz, pelo contrário, que ela fraqueja, que ela desaparece, que os seus malvados propósitos claudicam (é à luz que o Bem triunfa). A excepção é essa brincadeira cinéfila, esse piscar de olhos a George Lucas: o “sabre de luz” desencantado por Rebecca e que lhe permite combater o “dark side of the force” personificado por Diana.
Se é redundante afirmar que, num filme, luz e sombra estão em permanente dialéctica, em Lights Out, tal dialéctica assume uma dimensão intra-diegética, porque central no argumento e no ritmo dramático da narrativa; paradoxalmente, é justamente em virtude dessa dimensão que a marca meta-cinematográfica vem ao de cima, no sentido em que o filme dialoga com o próprio cinema, i.e., com a arte, a praxis, a técnica cinematográfica (da mesma forma que o film noir o faz, igualmente se servindo de uma filosofia maniqueísta “plástica” próxima da que aludimos acima: o noir, a sombra, a escuridão é justamente o ambiente em que ocorre o crime, a morte, o pecado, a depressão). E dialoga, muito particularmente, com uma das características plásticas seminais do cinema, na medida em que luz e sombra, claridade e escuridão outra coisa não são que avatares semânticos para “preto” e “branco”. Aliás, esse é um dos exercícios imaginativos mais estimulantes que o filme coloca ao espectador: e se Sandberg tivesse filmado Lights Out a preto e branco?
Se no campo, digamos, das ideias, este jogo de luz e sombra meta-cinematográfico dá já um generoso número de pontos ao filme, a sua aplicação prática, “no terreno”, não lhe fica atrás, no sentido em que o “índice de medo” é elevado (o som das arranhadelas na madeira ou dos passos “invisíveis” de Diana na escuridão é uma solução tão simples como assustadora) e, mais importante, faz-se sentir a todo o momento. Com efeito, e ao contrário daquilo que criticámos em The Conjuring 2 (The Conjuring 2 – A Evocação, 2016), no qual o terror apenas se manifestava de noite mas já não de dia (com o que de primário tal dualidade encerrava, mas, sobretudo, com o que de “segurança” e conforto garantia ao espectador, que sabe que as personagens, e ele próprio, nunca serão “atacados” de dia, cuja claridade e visibilidade rimam precisamente com esse “perímetro de segurança”, o que não deixa de ser irónico quando ao terror se pede, justamente, imprevisibilidade), em Lights Out, dado que é a escuridão o ambiente indutor do aparecimento da figura-de-terror principal, esta pode surgir a qualquer momento, pois essa mesma escuridão – que não se confunde, lá está, com a “noite” (que, é certo, sempre esteve, no cinema e na vida real, bem mais associada ao medo, ao crime, à morte, do que o dia) – bem pode estar – como acontece no filme – simplesmente debaixo da cama de um quarto (e como Sandberg sabe jogar com a profundidade de campo da escuridão…), mesmo quando a cena se passa de dia.
[Aos leitores que ainda não viram o filme, recomenda-se a interrupção da leitura neste ponto e o seu retomar após o visionamento]
A família, então. Diana, que matou o seu próprio pai (não é feita qualquer referência à figura materna, pelo que a célula familiar, aqui, está já parcialmente desmembrada à partida) (1), matou também o pai de Rebecca (2), revelação que vem anular toda a recalcada revolta desta para com a mãe (Rebecca sempre pensara que o pai as tinha abandonado por estar saturado das alucinações da mãe, razão pela qual tenta “retirar” Martin a Sophie, ressoando, aqui, um certo e metamorfoseado “Complexo de Electra”) e, em geral, com compromissos relacionais (a sua resistência em assumir Bret como seu namorado ou, tão simplesmente, em deixá-lo dormir em sua casa…). Há, ainda, a morte que dá o mote inicial ao filme, a de Paul, o padrasto de Rebecca e pai biológico de Martin (3). É toda uma cadeia “fatídica” com um autor comum e cujos motivos se encontram na obsessão, sem dúvida homo-erótica, de Diana por Sophie, de quem a primeira reclama a sua atenção exclusiva, não pestanejando na hora de afastar os “obstáculos” (os homens de Sophie) que surgem pelo caminho. Cadeia, essa, que só será interrompida, no último momento, por Sophie, que, suicidando-se, impede Diana de matar os filhos: “There’s no you without me”, abracadabra passional que, fazendo desaparecer Diana, só acentua a latente relação lésbica entra as duas. A mesma que se extrai do facto de, durante todos estes anos, Sophie ter omitido a verdade sobre a morte dos maridos, sendo apenas perante a iminente morte dos filhos – intocáveis ou “sagrados” neste sentido (ao contrário dos maridos, neste sentido mais “sacrificáveis”) – que tem força para enfrentar Diana e colocar um ponto definitivo naquela relação.
Outro dos aspectos interessantes do filme, se bem que não propriamente uma novidade no género de terror, é o paralelismo insinuante que vai estabelecendo entre doença mental e o contacto com o sobrenatural. “She is not real”, frisa Rebecca ao pequeno Martin para o tranquilizar e explicar que Diana não existe, que é um delíriro alucinatório/esquizofrénico da mãe e ao qual, portanto, é preciso dar um desconto (outro diálogo interessante entre irmão e irmã é quando o primeiro lhe pergunta se, pelo facto de a mãe ser doente mental, eles também serão). Menosprezo reforçado pelo facto de a mãe ter deixado de tomar os comprimidos que os médicos lhe receitara como obrigatórios (os mesmos que tentará tomar mais para o fim como forma de afastar Diana, mas sem sucesso). Mais tarde, contudo, Rebecca dirá, assustadíssima, “THE BITCH IS REAL!” (apontamento cómico que glosa o calão americano contemporâneo), assim se provando que, afinal, a mãe não estava “louca” e que os “sãos” é que não se apercebiam do que se estava realmente a passar (i.e., da existência de Diana), naquela que não deixa de ser uma insinuação de que esses auto-intitulados “sãos” (a sociedade dita “normal”) bem podem ser os “doentes” (e a doença a incapacidade justamente de acreditar em fenómenos para lá da nossa compreensão racional).
A recusa de um happy end pacífico e apaziguador característico de muito filme de terror (essa crua e enxuta sequência do suicídio com um tiro na cabeça) é outro dos factores que aumenta o interesse em Lights Out, se bem que seja contrabalançado por uma solução narrativa “compensadora” e, sobretudo, sintonizada com a preocupação temática “familiar”: definitivamente destruído o (que restava do) círculo familiar Sophie-Rebecca-Martin, um novo se ergue (plano-clichê dos “sobreviventes a descansar nas traseiras da ambulância”), composto por Bret (o namorado que, até esse momento, Rebecca recusara assumir como tal pelo trauma/revolta com o abandono do pai), Rebecca e Martin, um triângulo convencional de “pai, mãe e filho” improvisado mas suficientemente sólido para assegurar o “bem”, ou seja, a vivificação da “american family” tradicional (heterossexual, claro, em detrimento da relação lésbica definitivamente enterrada) e do seu “american way of life”. Este e outros apontamentos menos bons (algumas personagens sem profundidade e interpretações sofríveis, como a do miúdo) não retiram, contudo, o intrínseco valor e criatividade ao filme de Sandberg, antes deixando um lastro promissor para o futuro.