A tarde quente do último sábado, dia 23 de Julho, foi preenchida a apresentar, debater e ouvir histórias sobre um dos filmes mais subestimados da primeira década do século XXI, a segunda realização de Vincent Gallo, The Brown Bunny (2003). O filme foi exibido no âmbito de um evento À pala de Walsh, que teve como cenário a sala Raul Solnado da Guilherme Cossoul.
Depois do filme, a investigadora académica e argumentista Rita Benis e o engenheiro de som Vasco Pimentel falaram sobre a atribulada rodagem do filme, de que fizeram parte. A gravação dessa conversa não será publicada a pedido de um dos intervenientes.
Antes, a apresentação do filme foi feita pelo walshiano Luís Mendonça com base na folha de sala distribuída. Nessa folha incluiu-se os textos que o crítico norte-americano Roger Ebert dedicou ao filme. Os textos “thumbs down”, que escreveu em Cannes em Maio de 2003, e em que considerou o filme de Gallo o pior da história do festival. E o texto “thumbs up”, escrito em Setembro de 2004, em que Ebert dá uma volta de 180 graus à sua opinião sobre o filme, chegando mesmo a considerá-lo “um estudo sobre a solidão e o desejo que invoca uma terna tristeza”.
Publicamos abaixo as traduções desses textos que foram distribuídos antes da sessão.
Thumbs Down!
Maio, 2003
O “Bunny” de Gallo Salta para a Lista dos Piores de Sempre por Roger Ebert
CANNES, França–Aparecendo à tona como um nadador exausto, o Festival de Cannes produziu dois filmes esplêndidos na manhã de quarta-feira, depois de uma semana com algumas das mais deprimentes selecções de que há memória. “As Invasões Bárbaras” de Denys Arcand e “The Fog of War” de Errol Morris, sobre Robert McNamara, são sob formas diferentes obras-primas acerca de homens envelhecidos que encontram uma espécie de sabedoria.
Mas isso não faz manchete. A notícia é que terça-feira à noite Cannes mostrou um filme tão chocantemente mau que criou um escândalo aqui na Riviera não por causa do sexo, violência ou política, mas simplesmente por ser horrível. Aqueles que viram “The Brown Bunny” de Vincent Gallo têm-se juntado desde aí, com vozes silenciosas e sorrisos tristes, para discutir quão miserável ele é. Aqueles que o perderam têm esperança de arranjar bilhetes, uma vez que que nenhum outro filme inspirou tanto debate. “O pior filme na história do festival”, disse eu a uma equipa da televisão estacionada à entrada do cinema. Eu não vi todos os filmes da história do festival, mas sinto que o meu julgamento vai vingar.
Imaginem 90 minutos entediantes de um homem a percorrer a América numa carrinha. Imaginem longos planos de um pára-brisas à medida que ele colecciona insectos despedaçados. Imaginem não uma, mas duas cenas em que ele pára para meter gasolina. Imaginem um plano longo do deserto de sal de Bonneville onde ele corre na sua mota até desaparecer como um grão à distância, seguido de outro plano em que o grão à distância se torna na sua mota. Imaginem um filme tão insuportavelmente fastidioso que, a certa altura, quando ele sai da carrinha para mudar de camisola, ouvem-se aplausos na sala.
E depois, após metade da plateia ter saído e outros terem ficado porque não vão ver novamente um filme tão amador, narcisista, auto-indulgente e mentalmente tortuoso, imaginem uma cena onde a rapariga que o herói perdeu reaparece, faz-lhe um fellatio numa cena hardcore e depois revela a triste verdade sobre o seu relacionamento.
Sobre Vincent Gallo, a estrela do filme, o argumentista, produtor, montador e único progenitor, pode-se dizer que este talentoso actor deve ter perdido a cabeça para (a) fazer este filme e (b) permitir que este tenha sido visto. Sobre Chloe Sevigny, que interpreta a namorada, Daisy, tem de se dizer que ela traz uma verdade e uma vulnerabilidade à sua cena que existe muito acima do nível em que o filme está.
Se Gallo tivesse lançado fora o resto do filme e feito da cena com Sevigny uma curta-metragem, ele poderia ter ali alguma coisa. Que este filme tenha sido admitido em Cannes enquanto parte da Selecção Oficial é inexplicável. Sob nenhum padrão, através de qualquer lente, por via de nenhuma interpretação, este filme se qualifica para entrar em Cannes. A piada é: este é o mais anti-americano filme em Cannes, porque é muito anti-americano mostrá-lo como um exemplo de cinema americano.
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O Boato do Realizador Selvaticamente Insultado – Até por Si Mesmo por Roger Ebert
CANNES, França–O caso de “Brown Bunny”, um dos episódios mais surpreendentes na história do Festival de Cannes, deu uma nova volta sexta-feira, quando o realizador
Vincent Gallo pediu desculpas pelo seu filme e disse “É um desastre e uma perda de tempo”. “Brown Bunny” de Gallo, que foi exibido como uma das três entradas americanas na competição oficial, foi o filme pior classificado na história da Screen International, a publicação britânica que reúne votos de um painel de críticos. Foi vaiado e gozado durante a projecção, houve incontáveis abandonos da sala, e a sua inclusão na selecção oficial pôs em questão o julgamento, até mesmo a sanidade, dos programadores. Que muitos críticos franceses tenham gostado foi, disse Gallo, “quase como pôr sal na ferida”.
O filme consiste nuns intermináveis 90 minutos de uma banalidade sem assunto, em que Gallo atravessa o país a partir de uma corrida de mota na Califórnia, seguida por uma cena de sexo hardcore em que ele imagina que recebe um fellatio pelo seu amor perdido, interpretado por Chloe Sevigny. Diga-se que Sevigny, que alegadamente terá chorado durante a sessão, é heróica pela forma como encontra convicção e verdade na sua personagem, no meio de uma catástrofe generalizada. Muitos minutos das primeiras cenas consistem em planos como o de um pára-brisas que acumula insectos mortos.
Gallo é um talentoso actor, e o seu primeiro filme como realizador, “Buffallo 66” (1998), era tão peculiar e de espírito tão livre que não só perdoávamos as excentricidades como as celebrávamos. Nada na sua carreira fazia prever o desastre de “Brown Bunny”.
“Eu aceito o que os críticos dizem”, disse Gallo à Screen International, cujo painel deu ao coelho a sua classificação mais baixa de sempre. “Se ninguém quer vê-lo, então têm razão. Peço desculpa aos financiadores do filme, mas garanto-vos que nunca foi minha intenção fazer um filme pretensioso, auto-indulgente, um filme inútil ou pouco cativante”.
“O Caso Brown Bunny” gerou tanta publicidade, enquanto o ponto baixo de um ano miserável em Cannes, que poderá mesmo acabar por descobrir um distribuidor em França; pode haver um sinal positivo associado ao visionamento de um filme tão universalmente ridicularizado. Alguns críticos franceses especializam-se em defender o indefensável, para mostrar que eles sozinhos compreendem uma obra rejeitada; as suas explanações sobre “Brown Bunny” podem ser — na realidade, têm de ser — mais divertidas que o filme.
Espera-se que Gallo deixe a cidade rapidamente depois do desastre, mas ele também participa como actor em “The Tulse Luper Suitcases: The Moab Story” de Peter Greenaway, que passa na competição oficial esta semana. Isso significa que é esperado que marche mais uma vez sobre o tapete vermelho para dentro do Palais — onde , disse ele, a projecção de “Brown Bunny” foi “o pior sentimento que tive em toda a minha vida”.
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Gallo ataca depois do flop “Bunny” por Roger Ebert
Vincent Gallo lançou uma maldição ao meu cólon e um feitiço à minha próstata. Chamou-me “porco gordo” no New York Post e disse ao New York Observer que eu tenho “o físico de um traficante de escravos”. Ele está zangado comigo porque eu disse que “The Brown Bunny” era o pior filme na história do Festival de Cannes.
Não estive sozinho nesse meu julgamento. O Screen International, publicação britânica, reúne um painel para classificar as entradas oficiais no festival. “The Brown Bunny” teve 0,6 em 5 — o score mais baixo na sua história, diz a publicação.
Isto surgiu como um golpe para os franceses. O seu orgulho nacional não foi capaz de tolerar com a noção de que um filme americano era pior do que qualquer filme seu, pelo que dias depois eles contra-atacaram com “Les Cotelettes” de Bertrand Blier. “Ele acabou por ter uma classificação pior por causa dos abandonados críticos internacionais”, contou-me Colin Brown, editor da Screen International. “Sete zeros contra os cinco zeros do Galo”.
A projecção de “Bunny” para a imprensa foi “notável pela hostilidade sem freios do auditório”, escreveu A.O. Scott no New York Times. No fim, a plateia “deu voz a essa forma de abuso francesa que se parece com um cruzamento entre o mugido de uma vaca e o uivo de uma coruja”.
Durante a cena em que Gallo partilha uma bicicleta com a sua jovem mulher, eu tornei-me nostálgico de “Butch Cassidy”. De tal maneira que cantarolei suavemente “Raindrops Keep Fallin’ on My Head”. Parei depois de seis palavras quando a minha mulher me deu uma pancada nas costelas. Fui escutado por acaso por um jornalista da Hollywood Reporter, que me incluiu na sua cobertura sobre quão mal o filme foi recebido, e essa é outra razão pela qual Gallo se lançou ao meu cólon e próstata. Não estou demasiado preocupado. Fiz uma colonoscopia uma vez, e eles deixaram-me vê-la num televisor. Foi mais divertido que assistir a “The Brown Bunny”.
Um dia depois do fiasco da estreia do filme, a Screen International publicou uma notável entrevista na qual Gallo pedia desculpas pelo seu filme, chamando-o “um desastre e uma perda de tempo” e acrescentando “Peço desculpa aos financiadores do filme, mas garanto-vos que nunca foi minha intenção fazer um filme pretensioso, auto-indulgente, um filme inútil ou pouco cativante”. Acrescentou que a projecção oficial foi “o pior sentimento que tive na minha vida” e disse que nunca mais voltaria a assistir ao filme.
Sábado Gallo disse ao New York Post que a Screen International inventou essas citações. E acrescentou “Desculpem não ser gay ou judeu, não tenho um grupo especial de jornalistas a apoiar-me”. Estes comentários podem parecer politicamente incorrectos, mas não para Gallo, que diz ser um republicano conservador, ainda que, dado que o seu filme termina com uma cena hardcore de sexo oral, ele não deverá juntar-se a grupos da Moral Majority.
Mas será que Gallo foi realmente mal citado?
“Uma coisa completamente demente da parte de Gallo”, garantiu-me o editor Colin Brown. “Não só escrevemos tudo em Cannes de acordo com o que ele regurgitou, palavra por palavra, como foi tudo gravado em fita magnética”. Acrescentou “Faz-me pensar se isto não é uma campanha de marketing da parte dele. Já apanhei pessoas que dizem que ‘Brown Bunny’ está no topo dos filmes saídos de Cannes este ano que eles mais querem ver”.
Fionnuala Halligan, que escreveu o texto da Screen International, diz que citou Gallo rigorosamente e enviou-me uma cópia da sua transcrição. “No final ele está a gritar e a cuspir, e a sua invectiva é tão desagradável que me perturba ouvi-lo outra vez”, disse-me ela. “Penso que não foi um bom dia para ele se encontrar com a imprensa, dado que estava obviamente muito incomodado. Ele chegou tarde, e todas as entrevistas que estavam marcadas ficaram juntas num único grupo, o que foi bom para mim, já que ele, caso contrário, provavelmente ter-me-ia esmurrado”.
Gallo quase chorou numa entrevista em Cannes enquanto descrevia como foi difícil “crescer feio”, mas a empatia tem os seus limites, e ele não teve lágrimas para este porco gordo e traficante de escravos. É verdade que sou gordo, mas um dia serei magro, e ele continuará a ser o realizador de “The Brown Bunny”.
Thumbs Up!
Setembro, 2004
Em Maio de 2003 eu saí da projecção de imprensa de “The Brown Bunny” de Vincent Gallo e fui perguntado por uma equipa televisiva o que eu pensava sobre o filme. Disse que pensava que era o pior filme na história do festival. Isto era uma hipérbole – eu não tinha visto todos os filmes da história do festival – mas eu ainda vibrava com uma das projecções mais desastrosas em que participei.
A plateia foi ruidosa e desdenhosa no seu desagrado para com o filme; centenas abandonaram a sala, e muitos dos que ficaram só o fizeram porque queriam vaiar. Imaginem, escrevi, um filme tão insuportavelmente entediante que quando herói muda de camisola, houve aplauso. O painel de críticos reunido pela Screen International, uma publicação britânica, deu ao filme a classificação mais baixa na história das suas votações anuais.
Mas depois uma coisa engraçada aconteceu. Gallo voltou para a mesa de montagem e cortou 26 dos 118 minutos do filme, ou quase um quarto do seu tempo de duração. E durante o processo transformou-o. A forma e propósito do filme emergiram da miasma da montagem original, e é serena e tristemente eficaz. Diz-se que a montagem é a alma do cinema; no caso de “The Brown Bunny” é a sua salvação.
Os críticos que viram o filme no passado outono nos Festivais de Veneza e Toronto esperavam o desastre sobre o qual haviam lido em Cannes. Aqui está Bill Chambers da Film Freak Central, escrevendo de Toronto: “Ebert catalogou os seus preconceitos mainstream (takes inteiros: mau; estrutura não-clássica: não; actrizes a serem agressivamente sexuais: mau)… e depois teve uma ilusão de grandeza ainda maior que os Gallo-cêntricos créditos de abetura de “The Brown Bunny”: ‘Um dia serei magro mas Vincent Gallo será sempre o realizador de ‘The Brown Bunny’”.
Leitores fiéis saberão que eu admiro takes longos, especialmente de Ozu, que tenho fome por estruturas não-clássicas, e que eu não tenho absolutamente nada contra sexo no cinema. Citando a minha frase sobre um dia ser magro, Chambers poderia com justiça ter explicado que eu estava a responder a Gallo quando este me apelidou de “porco gordo” – e, a propósito disso, desde que fiz essa afirmação perdi 39 quilos, ao passo que Gallo ainda é de facto o realizador de “The Brown Bunny”.
Mas ele não é o realizador do mesmo “The Brown Bunny” que eu vi em Cannes, e o filme agora funciona de modo tão diferente que eu sugiro que a montagem original seja incluída num eventual DVD, para que os espectadores possam ver com os seus próprios olhos como é que 26 minutos de agressivamente inúteis e vazias imagens podem afundar um filme potencialmente bem sucedido. Para citar apenas um corte: em Cannes, escrevi eu, “Imaginem um plano longo do deserto de sal de Bonneville onde ele corre na sua mota até desaparecer como um grão à distância, seguido de outro plano em que o grão à distância se torna na sua mota”. Na nova versão vemos a mota desaparecer, mas a segunda metade do plano foi completamente cortada. Isto ajuda em duas maneiras: (1) salva a cena de um riso não intencionado, e (2) fornece um propósito emocional, já que desaparecer à distância é muito diferente de partir para longe e depois voltar atrás.
O filme é protagonizado por Gallo enquanto Bud Clay, um corredor de motas profissional que perde uma corrida na East Coast e depois viaja pelo país na sua carrinha. (A corrida no filme original demorava 270 segundos mais que na versão presente, e era tudo dado num único plano, de motas a andarem às voltas na pista.) Bud é um homem solitário, introspectivo e carente, que pensa muito sobre o seu amor anterior, cujo nome na literatura americana tem encarnado o amor inacessível e idealizado: Daisy.
Gallo permite a si mesmo ser desamparado e desprotegido em frente à câmara, e isso é uma virtude. Tenham em conta uma cena inicial em que ele pergunta a uma rapariga atrás do balcão de uma loja de conveniência se quer acompanhá-lo numa viagem à Califórnia. Quando ela declina, ele diz “por favor” num tom suplicante que poucos actores teriam coragem de imitar. Existe outra cena perto desta que contém uma poesia dolorosa. Numa cidade algures no meio da América, numa mesa num parque, uma mulher (Cheryl Tiegs) está sentada sozinha. Bud Clay estaciona a carrinha, vai ter com ela, sente o seu desespero, faz-lhe algumas perguntas, e sem palavras abraça-a e beija-a. Ela nunca diz nada. Passado algum tempo ele deixa-a. Há um tipo de comunicação a acontecer aqui que é completo e comovente, e não precisa de uma única palavra ou explicação.
Na versão original, havia uma sequência interminável e inútil de Bud a guiar através dos Estados ocidentais e coleccionando insectos esmagados no pára-brisas; os 8 ½ minutos que Gallo tirou dessa sequência eram tão excitantes quanto assistir a tinta depois de já estar seca. Agora ele chega mais cedo à Califórnia, e acontece a agora já famosa cena no quarto do motel envolvendo Daisy (Chloe Sevigny). Sim, é explícita, e não, não é gratuita.
Mas revelar como funciona num nível mais complexo que o físico seria minorar a forma como a cena resulta. A cena, e o seu diálogo, e o flashback para a personagem de Daisy na festa, trabalham conjuntamente para iluminar aspectos complexos da sexualidade de Bud, a sua culpa, e os seus sentimentos pelas mulheres. Mesmo em Cannes, mesmo depois de insuportavelmente supérfluas imagens, essa cena resultava, e eu escrevi: “Tem de se dizer que ela traz uma verdade e uma vulnerabilidade à sua cena que existe muito acima do nível em que o filme está”. Gallo pega em material de pornografia e dá-lhe um novo propósito numa cena sobre controlo e desejo, fantasia e talvez mesmo loucura. Essa cena é muitas coisas, mas não é erótica. (Uma amiga minha observava que Bud Clay, como muitos homens, tinha uma maneira de colocar perguntas a uma mulher quando esta está menos preparada para as responder.)
Quando os filmes eram cortados em Moviolas, havia este dito de que eles podiam ser “salvos na máquina verde”. Desenganem-se: a versão de Cannes era a de um mau filme, mas agora a montagem de Gallo libertou de dentro dela o bom filme. “The Brown Bunny” não é ainda um completo sucesso – é estranho e desconcertante quando não quer ser – mas como um estudo sobre a solidão e o desejo ele invoca uma terna tristeza. Vou ficar para sempre agradecido pelo facto de ter visto o filme em Cannes; não perceberão onde Gallo chegou sem perceberem onde ele começou.
Traduções por Luís Mendonça
Fontes:
Textos “thumbs down”: http://www.listology.com/story/ebert-and-gallo
Texto “thumbs up”: http://www.rogerebert.com/reviews/the-brown-bunny-2004