Filmado com três iPhone 5S e uma aplicação de controlo de foco e luminosidade, Tangerine (2015) vem sendo apontado, desde a sua estreia em Sundance no já longínquo mês de Janeiro de 2015, como não só a oitava, mas também a nona, a décima e a décima-primeira maravilha do “cinema independente” norte-americano. Impõe-se, então, a pergunta: é assim tão desconsolador o “cinema independente” norte-americano?
Não querendo descambar em território demasiado cínico, torna-se quase inevitável pensar que a estima pelo filme de Sean Baker, além da relacionada com o seu resumo e extensão formal do que têm feito milhões de utilizadores de smarthphones pelo planeta inteiro (ainda lhe irão chamar de Citizen Kane da era dos Smarthpones), terá muito a ver com a consciente ou inconsciente “consciência social” da populaça crítica perante o mundo LGBT apresentado no filme, numa certa condescendência que é, ela própria, um insulto à própria comunidade LGBT, algo que é desmentido pelas personagens do filme, que não têm nem paciência nem tempo para fazerem o papel de coitadinhas e “vítimas da sociedade”; quando Sin-Dee (Kitana Kiki Rodriguez) é alvo de um olhar incrédulo de um transeunte, sai logo um “’tás a olhar p’ra onde, caralho?”. Toca a andar.
Mas, a não ser que tenhamos umas três ou quatro linhas de coca ao nosso dispor, esta locomoção a 100 à hora acaba por progressivamente nos anestesiar a vista e o corpo.
A esta animalidade e fogo-de-artificio das personagens, Sean tratou logo de injectar um arsenal de planos rápidos e de ângulos aleatórios e uma banda-sonora electrónica a dar de si de minuto a minuto, algo que tem tanto de inovador como aqueles jogos florais de praia, quando as meninas levam água dos meninos e fogem e os meninos vão atrás delas para darem mais água. E, pelo menos durante uma meia-hora, a “coerência” festivaleira agrada-nos razoavelmente, ajudada por uma (falsa) sensação de que estamos a presenciar uma obra em tempo real e, como diria Larry David, “a movie about nothing”.
Mas, a não ser que tenhamos umas três ou quatro linhas de coca ao nosso dispor, esta locomoção a 100 à hora acaba por progressivamente nos anestesiar a vista e o corpo. Começa-se a pensar, então, que isto daria uma curta-metragem dos diabos, uma espécie de TGV cinematográfico a proporcionar prazeres momentâneos e esquecido logo de seguida. Mas mesmo cansados, lá vamos, de vez em quando, sendo ligeiramente acordados por planos de uma Los Angeles banhada em Sol tardio numa véspera de natal. “Natal sem neve não é nada”, diz uma das personagens.
Para piorar um bocadinho mais as coisas, Baker trata de providenciar uma resolução para cada personagem a tresandar a um desajustado pathos, a leste das tropelias cartoonescas que antes tínhamos presenciado. Nem sequer falta a música grandiloquente, “vejam, também tenho sentimentos!”. Nem a bela cena final te pode desculpar na totalidade, Sean.
Para o fim, guardamos a menção ao verdadeiro momento de excelência artística de Tangerine. Num filme todo ele a abusar de adrenalina, é aí, nesse minuto de quietude num carro na sua lavagem, que a obra de Baker atinge a sua plenitude sonora e visual, com ligeiras mas perceptíveis modulações no enquadramento a proporcionar belo prazer sensorial. Para juntar à similar cena no Crash (1996), na categoria de “grandes cenas da sexolândia na história do cinema”.