Entre os 10 e os 11 anos andei num externato franciscano em que, sempre que chovia no intervalo do almoço (que posteriormente percebi ser mais longo do que o é normalmente na escola pública) e para que os meninos e meninas não andassem a perturbar a natural circulação dos corredores, congregavam-se as pequenas bestas no auditório da escola (maior que qualquer uma das salas dos Quarteto) e colocava-se um filme para acalmar a maralha. Talvez por lapso rememorativo, talvez por falta de variedade filmográfica, creio que o filme era sempre o mesmo: A.I. Artificial Intelligence (A.I. Inteligência Artificial, 2001) – já estão a ver que eu sou jovencito… Na altura não sabia quem era Spielberg, muito menos sabia quem era Kubrick, e pouca falta me fazia sabê-lo, já que o meu filme preferido era The Mask (A Máscara, 1994).
Certo é que tantas vezes o filme passou quantas vezes me sentei nas cadeiras do auditório e de todas as vezes me desfiz num pranto incontrolável no momento em que abandonam o menino no meio do mato. De tal modo que as auxiliares de acção educativa (na altura não tinham este nome) me retiravam da sala – contra a minha vontade – para não importunar os meus colegas. Por isso nunca cheguei a saber o que ocupa a segunda metade do filme, até ao dia de hoje… Sirvo-me desta anedota autobiográfica não para reflectir sobre o papel do cinema no acesso às minhas próprias emoções (que daria um tratado, parece-me) mas para ressalvar que Spielberg é um realizador cuja obra é ideal para os intervalos de chuva num colégio privado. A grande maioria dos seus filmes fazem-se de uma inocência ideal para o descanso dos funcionários escolares, na igual proporção de moral e candura (quando e diz que é um cineasta sem Id é disto que falam, das interrupções lectivas molhadas).
Aquela que é a força cândida do seu cinema aparece aqui forçada, estudada, orquestrada de forma grosseira, desesperada por um sucesso.
The BFG (O Amigo Gigante, 2016), adaptado fielmente do livro homónimo de Roald Dahl de 1982 (quase totalmente desconhecido por estas bandas, mas aparentemente muito apreciado pelas bandas de lá), posiciona-se como a saturação do que descrevi no parágrafo anterior. Como se Spielberg tivesse andado a ler as análises, as críticas e as teses escritas sobre a sua obra e as tivesse tentado adaptar com igual fidelidade. Cristalizando o seu cinema de maravilhamento ingénuo num carrossel desengonçado onde cada lampejo de criatividade é revestido de uma película açucarada tornando tudo brilhante, plástico e peganhento – como certos bolos de pastelaria. Pois note-se: Spileberg parece ter escolhido uma actriz pespineta à moda de Annie (1982) para fazer a enésima figuração de uma orfã inglesa dickensiana no cinema (referência que é assumida, a menina anda a ler às escondidas por entre os lençóis, de lanterna em riste, The Pickwick Papers), esta é raptada para uma terra distante e mágica onde tudo é possível. Tem-se comparado The BFG a E.T. the Extra-Terrestrial (E.T. – O Extra-Terrestre, 1982), mas o filme que apresenta mais proximidades é, como se subentende, Hook (1991)] e a variação de Peter Pan faz-se variação das Gulliver’s Travels com as escalas invertidas – portanto um potpourri da ficção inglesa.
No que respeita ao cinema, Spileberg parece ter-se lançado num piloto automático decorativo a fazer lembrar as experiências de motion capture familiar de Robert Zemeckis, muito longe da energia tresloucada da sua anterior experiência com a tecnologia de captura de movimentos, The Adventures of Tintin: The Secret of the Unicorn (As Aventuras de Tintin – O segredo de Licorne, 2011). De quando em vez o realizador parece trabalhar sobre o universo popular dos filmes de homem (e mulher, e gorila, e insecto e tudo o mais) gigante dos anos 50 resultantes da má consciência nuclear e doutras vezes, quando tenta frisar o poético e o mágico do mundo dos sonhos, aproxima-se (cola-se) ao universo Disney. Por tudo isto aquela que é a força cândida do seu cinema aparece aqui forçada, estudada, orquestrada de forma grosseira, desesperada por um sucesso, por reencontrar o público deslumbrado de E.T. ou de Close Encounters of the Third Kind (Encontros Imediatos do 3.º Grau, 1977) – ou então porque o cinema dos efeitos digitais é hoje cada vez mais idêntico entre si, e nem Spielberg consegue escapar a esse ralo.
Ainda assim, The BFG (não confundir com o dialecto de vídeo-jogos onde a sigla significa Big Fucking Guns) descobre-se na meia hora antes do desenlace quando o filme escorrega dos dedos xaroposos de Spielberg caindo nas mãos descuidadas duns ZAZ (outra sigla, Zucker, Abrahams e Zucker) ou de um Mel Brooks, com piadas de peidos, louça partida e a rainha de Inglaterra. Essa sequência vale o filme, mas é penoso lá chegar.